De vez em quando (a frequência parece mudar mais ou menos aleatoriamente), alguém, muitas vezes pertencente ao círculo dos chamados formadores de opinião (quem os escolhe?), decide dar um palpite sobre questões gramaticais. Mais precisamente, decide fazer uma listinha de vícios de linguagem, maior ou menor, que estariam ocorrendo.
Nossos intelectuais babam pelo que chamam de português ‘certo’ – o presidente interino Michel Temer, por exemplo, se candidata à Academia com umas mesóclises. Nesse caso, há dois vícios fundamentais: a) não sabem praticamente nada sobre a que é a mais banal das constatações – que pessoas (grupos) diferentes falam de maneira diferente; b) esse fenômeno acontece em todas as línguas desde sempre – e continuará a acontecer. E que não se trata de erros.
Esses ‘intelectuais’ não conseguem não ter dor de ouvido quando surge uma regência ou uma concordância diferente da que aprenderam que é a correta na sua quinta série. Atribuem sua tese às gramáticas, mas pode-se ter certeza de que não leram nenhuma do início ao fim (se é que já viram uma).
É verdade que as gramáticas que supostamente conhecem são conservadoras. Mas não tanto quanto pensam que elas são. Descobririam isso se as lessem, especialmente se lessem mais de uma.
Regras imutáveis
Dizia, no início da coluna, que, de vez em quando, alguém dá um palpite sobre regras da gramática, e se escandaliza com o fato de que falantes não seguem mais as regras que aprenderam e que, segundo eles, deveriam ser seguidas para sempre.
Quem fez isso no dia 25/7, na Folha de S. Paulo, foi Ruy Castro. Em sua coluna, denunciou regências que considera erradas.
Denunciou “O deputado que faltar sessões” (disse que deve ser ‘às sessões’) – e acrescentou que teme pelo futuro da preposição ‘a’ na língua. Afiançou que “os fatos novos com que estamos lidando” têm levado a gramática a perder de goleada para as construções mais estapafúrdias. Por exemplo, “faz apologia a” (deveria ser ‘de’), “em protesto a” (em vez de ‘contra’), “direito a protestar” (em vez de ‘de’), “em celebração a” (em vez de ‘de’).
Não diz quais são os fatos, nem mostra que há correlação entre eles e as regências. Aliás, todas as ‘novas’ são com a preposição ‘a’. Não sei como temer por seu futuro na língua, que parece alvissareiro…
“Como se pode ser aliado a alguém?”, pergunta. E termina com o veredicto expresso no mais grosseiro clichê: “talvez o alvo da vez seja a pobre e abandonada língua portuguesa”.
Mudança contínua
Ora, a língua portuguesa (como as outras todas) está em mudança desde que existe – fixar a data de ‘desde que’ não é tão fácil, aliás; são necessários diversos critérios, alguns de política linguística!
Arrisco aqui duas análises. É ‘regular’ dizer ‘aliar-se a alguém’ (Ruy Castro aprovaria). Qual é a novidade da extensão da regência a outro contexto? Se é comum dizer ‘aliar-se a’, por que não dizer ‘aliado a’ (pensa o falante)? O que há de estapafúrdio nisso?
Ruy Castro não vê diferença entre ‘faltar sessões’ e ‘faltar às sessões’. Para mim, ‘faltar às sessões’ é faltar a todas (o artigo definido garante). ‘Faltar sessões’ é faltar a algumas, e essas faltas implicarão perda de remuneração. Não parece óbvio?
Os fatos que Ruy Castro cita mal servem para sua breve coluna (também porque esta não analisa nada). Em nada ameaçam a língua, que, aliás, está se firmando cada vez mais. Variantes como as assinaladas (que podem se tornar mudanças) apenas a deixariam um pouco diferente do que era há uma geração. Não sei se Ruy Castro lê Camões ou Eça, Machado ou Manoel Antonio de Almeida, Rubem Fonseca ou Nelson Rodrigues (supostamente, sim). E se, lendo-os, vê as diferenças. Deveria ver.
Mas duvido que leia (ou tenha lido) livros como O processo civilizador (no qual poderia ler uma passagem como “Na sociedade da corte ninguém diz ‘como bem sabe’, ‘um bocado de vezes’ ou ‘acamado’” – traduções de ‘comme bien sçavez’, ‘souvents fois’ e ‘maladif’).
Se lesse, aprenderia que falar assim ou assado é mais uma questão de etiqueta (por isso o uso do termo ‘da corte’…) do que de exatidão ou de outra coisa qualquer que, ele deve pensar, uma língua deveria sustentar. Clareza, talvez.
Também duvido que leia algo como o livro de Guy Deutscher, O desenrolar da linguagem. Ficaria sabendo que fatos como os que ele cita se repetem há séculos, em todas as gerações. Avaliações como a dele também. E nunca se concretizaram.
O que dizer de um livro como o de Faraco, História sociopolítica do português? Evidentemente, Ruy Castro não deve nem ter ouvido dizer que há uma nova safra de gramáticas do português do Brasil.
Mas, se os lesse, como ter assunto com os compadres? Como rir dos erros dos outros? Até quando esse tipo de pensamento, se assim se pode chamá-lo, continuará abusando de nossa paciência, e decidindo o que as escolas devem fazer?
Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas