“Se você for, eu fico”. Nesse caso, ‘se’ é usado como conjunção condicional. Mas existem diversas acepções e diferentes funcionamentos para a palavra ‘se’. Houaiss lista as seguintes em seu dicionário: genericamente, é pronome de terceira pessoa; tem sentidos específicos (expressa reflexividade ou reciprocidade: feriu-se, agrediram-se); complementa verbo pronominal transitivo indireto ou bitransitivo (deu-se ao trabalho de…); exprime sentimento de mudança de estado (atreva-se e verá); é símbolo de indeterminação do sujeito (vive-se bem); é palavra expletiva, para realçar sentidos dos verbos (foi-se embora); é partícula apassivadora (alugam-se quartos).
É bem provável que estudos minuciosos de dados mais numerosos (não de exemplos escolhidos para ilustrar uma lista conhecida) revelem outros funcionamentos ou sentidos.
Vou considerar só dois casos: índice de indeterminação do sujeito e partícula apassivadora. A tradição é seguir a classificação consignada no verbete do dicionário Houaiss, mas sabe-se que Said Ali contestou a existência da partícula apassivadora. Para ele, o ‘se’ de “vive-se bem” e o de “alugam-se quartos” é o mesmo.
Já tratei desta questão mais de uma vez e, portanto, não vou repetir os argumentos. Só retomo o caso para ilustrar um argumento metateórico, conhecido como princípio de economia ou de parcimônia. Seu primeiro propugnador deve ter sido Guilherme de Ockham, medieval ou moderno, conforme o que mais se valorize em sua obra. Sua tese é que “as entidades não devem ser multiplicadas além da necessidade”.
Visto assim, o enunciado tem caráter metafísico, isto é, diz respeito ao que existe ou não existe. Said Ali, por exemplo, diminui a população de ‘se’s, eliminando o chamado apassivador. Para ele, esta entidade simplesmente não existe.
Um ‘se’ a menos
Compare-se o ‘se’ indeterminado, em um exemplo um pouco mais complexo, com um ‘se’ dito apassivador:
– Precisa-se urgentemente de moedas.
– Alugam-se quartos.
Dois argumentos podem mostrar que se trata do mesmo ‘se’: a) todos ‘sentimos que’ (isto é, é assim que interpretamos estas formas), nos dois casos, trata-se de alguém não definido, não especificado, que aluga e precisa. A leitura fica mais clara se procuramos os complementos verbais. O que se aluga? Quartos. Do que se precisa? De moedas. A única diferença é a regência verbal: ‘precisa’ pede um ‘de’ e ‘aluga’ se liga diretamente ao complemento (casas).
Quem diz que há um ‘se’ apassivador alega que “alugam-se quartos” é uma passiva. Ledo engano, decorrente de má observação: a passiva “casas são alugadas” é apenas uma oração sinônima de “alugam-se casas”, como qualquer passiva o é da ativa correspondente (leu o livro / o livro foi lido).
Said Ali argumenta apresentando diversos fatos e suas interpretações. Como disse, não vou repeti-los. Hoje só me interessa o princípio de Ockham: se há uma solução mais simples e outra mais complicada, em geral a mais simples é melhor.
E o mesmo na concordância…
Dou outro exemplo. Em sua Moderna gramática portuguesa (37a Edição, Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 1999, p. 555), Bechara, expondo regras de concordância, trata também da concordância dita ideológica (ex.: “O povo trabalham”), que condena. Mas acrescenta:
“Se houver, entretanto, distância suficiente entre o sujeito e o verbo e se quiser acentuar a idéia de plural do coletivo, não repugnam à sensibilidade do escritor exemplo[s] como o[s] seguinte[s]: Começou então o povo a alborotar-se, e pegando do desgraçado cético o arrastaram até o meio do rossio e aí o assassinaram, e queimaram, com incrível presteza (Alexandre Herculano)”.
Bechara se vale de três argumentos (razões, motivações) explícitos para justificar as formas verbais no plural (arrastaram, assassinaram, queimaram), dado que o sujeito está no singular (o povo). As razões seriam: a) o sentido de coletivo, obviamente, tratado antes; b) que haja distância entre sujeito e verbo; c) que a concordância irregular não repugne à sensibilidade do escritor. Provavelmente a análise pode dispensar o argumento da sensibilidade, ficando apenas com o do sentido e o da distância. Dois argumentos em vez de três.
Para aceitar como relevante o argumento da sensibilidade, seria necessário invocar outros argumentos, expostos talvez em outros lugares: os escritores nunca erram (exceto quando querem). Quem diz “o povo trabalham” é gente bruta, sem sensibilidade.
Sabe-se que as línguas variam internamente. E que não há diferença apenas entre dialetos ou modalidades. Ela está no interior de cada uma das modalidades, em cada um dos dialetos, que apenas separamos imaginariamente como blocos compactos.
A teoria de Ockham se popularizou como “Navalha de Ockham”, porque este instrumento epistemológico implica cortar (e jogar fora) o que estiver sobrando. Navalha neles!
Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas