Impossível não lembrar do comissário Salvo Montalbano, criação do escritor italiano Andrea Camilleri (1925-), ao ler no noticiário as últimas sobre os milhares de refugiados da Tunísia e da Líbia recentemente chegados a Lampedusa, pequena ilha italiana localizada entre a Tunísia e a Sicília.
O comissário, geralmente sisudo e meio mal-humorado, assistia a um desembarque de tunisianos na cidade imaginária de Vigata, na Itália, quando viu um menininho saltar do barco de mãos levantadas, em sinal de rendição.
“Afinal, de que buraco do inferno vinha aquele garoto”, perguntou-se Montalbano, “se já com tão pouca idade havia aprendido aquele terrível gesto de mãos ao alto, que certamente não tinha visto nem no cinema nem na televisão?”
“A resposta veio rápida: de repente, dentro de sua cabeça, houve uma espécie de relâmpago, um verdadeiro flash. E, dentro desse relâmpago de curta duração, o caixote, o beco, o porto, a própria Vigata, tudo desapareceu e depois ressurgiu reconstituído no granulado preto-e-branco de uma velha fotografia, vista muitos anos antes mas batida havia mais tempo ainda, durante a guerra, antes que ele nascesse, e que mostrava um menininho judeu, ou polonês, com as mãos para o alto, os mesmos olhos arregalados, a mesma vontade de não começar a chorar, enquanto um soldado apontava o fuzil contra ele.” (Guinada na vida, Record, p. 46)
A imagem é famosa demais para merecer descrição minuciosa: tirada no gueto de Varsóvia (Polônia), ela mostra em primeiro plano um menino de casaco e boné com um soldado nazista apontando a arma por trás.
Hoje considerada uma das imagens mais fortes e emblemáticas do Holocausto, ela foi objeto, recentemente, de investigação do professor Dan Porat, da Universidade Hebraica de Jerusalém (Israel), que sobre ela escreveu o livro The boy: a Holocaust story (Hill and Wang, 2010). Porat queria saber quem era o tal menino, se ele tinha sobrevivido à guerra.
Não foi o primeiro: em A child at gunpoint: a case study in the life of a photo (Aarhus University Press, 2004), o pesquisador Richard Raskin se fez a mesma pergunta. E sugeriu que o impacto causado pela foto está no fato de ela propiciar, como poucas, a identificação entre o observador e o menino.
Hoje ninguém tem dúvidas de que lado está quando vê aquela foto – embora naquela época alguns não tivessem essa certeza. Da mesma forma, Montalbano não hesitou, na história de Camilleri, em tentar ajudar o pequeno refugiado, que o acabou enredando em uma trama que só lendo (e vale muito a pena ler!).
Imigrantes rejeitados
As revoltas que resultaram na deposição dos presidentes da Tunísia e do Egito, bem como na guerra civil que cerca o governo de Muammar Kadhafi na Líbia, produziram, como em qualquer conflito de grandes proporções, um grande número de refugiados.
Só que, enquanto os Estados Unidos e a Europa celebram os movimentos como sinal de modernização e valorização da democracia, nem querem ouvir falar de mais imigrantes em seus territórios.
Há alguns meses, o governo francês emitiu um comunicando declarando que não aceitará nenhum imigrante tunisiano que não seja portador de visto válido. E o ministro da Alemanha rejeitou em fevereiro passado a proposta da Itália de redistribuir os refugiados por vários países.
Sem contar o comissário Montalbano e a agência que cuida da questão dos refugiados na Organização das Nações Unidas (ONU), além de algumas outras organizações não-governamentais, parece que pouca gente vem se sensibilizando com os cerca de 30 mil refugiados da Tunísia, da Líbia e do Egito, que desde o início dos protestos em janeiro deste ano vêm tentando chegar à Europa, geralmente por mar.
Destes, estima-se que 800 tenham morrido nos últimos quatro meses em naufrágios. O episódio mais drástico talvez tenha sido o do barco que saiu da Líbia em março, segundo o jornal britânico The Guardian, com 72 passageiros. À deriva no Mediterrâneo por falta de combustível, 61 pessoas acabaram morrendo de fome e de sede, enquanto esperavam o socorro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que não chegou.
Pode parecer meio piegas acabar esta coluna lembrando que refugiado é refugiado, independente de época, lugar, cor e religião. Mas, assim como aqueles que assistiram àquela cena do gueto de Varsóvia provavelmente não sentiram a menor identificação com o garoto, talvez por ele ser judeu, estamos deixando passar algo ao não darmos a devida atenção ao que está se passando agora, neste momento, no Mediterrâneo, talvez por estarmos tratando de refugiados muçulmanos.
Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro