Regras, leis

Lei tanto significa “o que se deve fazer” (é seu sentido jurídico) quanto “o que acontece regularmente”, isto é, a descrição de um fato sistemático (é seu sentido científico). Leis do primeiro tipo definem o montante dos pagamentos do imposto sobre a renda, por exemplo. Leis do segundo tipo explicam o movimento dos corpos, entre numerosos outros fatos.

Uma regra manda fazer a concordância do adjetivo com o substantivo ou do verbo com o sujeito. Mas uma regra também descreve a regularidade da palatalização das consoantes /t/ e /d/ diante de /i/, que leva à pronúncia [tchia] – [djia] em algumas regiões do país, em vez de [tia] – [dia] em outras regiões. E uma regra comanda (descreve como é) o alçamento de vogais átonas, produzindo pronúncias como [mininu] e [curuja], sem afetar as tônicas: [você], [coco]; nunca [*voci], [*cuco].

Assim, no campo dos estudos da língua, há regras normativas e regras descritivas (eventualmente, explicativas). As primeiras têm funções sociais – querem produzir comportamentos. As outras têm funções científicas – querem produzir saber.

O sentido mais corrente de regra – para muitos, o único – é de comando, de lei que se deve seguir. Essa versão quase exclusiva se deve à brutal redução dos papéis das gramáticas na escola e, principalmente, na sociedade.

Embora na escola se estude a classificação dos fonemas, a estrutura das sílabas, uma classificação das palavras e algumas das regras de sua formação, uma classificação das orações e aspectos de sua estrutura, etc., o que fica são apenas as regras que corrigem: a concordância nominal deve ser assim ou assado, a regência de tal verbo deve ser indireta, a divisão silábica de palavras como ‘passado’ deve ser ‘pas-sa-do’, tal construção é errada etc. Ninguém pergunta a um professor de português se ‘exceto’ é advérbio. Pergunta pelas normas: como se deve escrever, como se deve pronunciar.

Supor que só há regras normativas é uma completa falsidade, tanto do ponto de vista histórico quanto do teórico e metodológico

As regras ortográficas são o melhor sintoma dessa mentalidade. Poucos discutem suas motivações: o que vigora são as listas, os manuais de uso. Chega-se a esquecer que são baixadas por lei ou portaria.

Ora, supor que só há regras normativas é uma completa falsidade, tanto do ponto de vista histórico quanto do teórico e metodológico. Pior, essa versão falsa é vista de forma absurda: as regras seriam instituídas pelos gramáticos, como se lê frequentemente nos jornais, quando ocorre algum debate sobre língua.

Uma leitura, mesmo banal, de qualquer gramática (refiro-me às gramáticas, não aos manuais de redação ou de ‘autoajuda’, do tipo ‘não erre mais’), deixa claro que os gramáticos apresentam o resultado de sua pesquisa sobre a língua. É claro que estabelecem um limite: só tratam da língua como escrita pelos melhores escritores (na verdade, selecionam os exemplos). É claro que essa escolha implica uma posição relativamente a uma representação imaginária da língua. É como dizer que a verdadeira língua é a dos ‘melhores’.

Gramáticas
Ao elaborar sua gramática, o gramático tradicional estabelece um limite: tratar apenas da língua usada pelos melhores escritores em sua escrita. Essa opção reflete a valorização de uma modalidade linguística em detrimento de outras. (foto: Roberto B. de Carvalho)

Essa opção dos gramáticos tradicionais (sem conotação pejorativa) é uma seleção ideológica, cujo traço essencial é a maior valorização de uma modalidade em relação às outras etc. A gramática tem também um papel político: dotar um povo, ou um país, de uma língua oficial. Mesmo assim, ela não poderia ser lida como a instituição de regras pelos gramáticos. Eles não dizem “as regras devem ser estas”, mas “as regras que os escritores seguiram são estas”. Também anotam algumas variantes, mas que tratam como exceções.

Todo falante usa regras

As gramáticas logo vão à escola, às editoras e às redações. Portanto, à sociedade. Assim, logo cumprirão um segundo papel: o de erigir a gramática (a ‘língua’) dos escritores em modelo de escrita para todos e, eventualmente, em modelo de fala e em critério de avaliação da capacidade intelectual. É um corolário da ‘transformação’ da suposta língua dos escritores em língua do Estado (e da razão…).

Sumariamente, essa característica dá conta do papel social das gramáticas oficiais. No entanto, ao lado disso, e não necessariamente em posição de confronto, deveria ser claro que todos os que falam seguem regras. Só se fala segundo uma gramática. Não existe língua sem regras, e, por extensão, não existe variedade linguística que não siga regras.

Analfabetos seguem regras, crianças seguem regras. Estrangeiros em fase de aprendizagem da língua seguem regras. Eventualmente, produzem formas inusitadas, que alguns explicam como analogias. Assim, mesmo os verdadeiros erros (formas que não ocorrem regularmente em nenhuma das variedades linguísticas existentes) decorrem da aplicação de uma regra, ou da extensão de uma regra a domínios em que ela não se aplica.

Mesmo os verdadeiros erros decorrem da aplicação de uma regra, ou da extensão de uma regra a domínios em que ela não se aplica

Vejamos um caso exemplar, a hipercorreção, que consiste em ‘corrigir demais’. Ela tem aspectos sociais – a condenação do erro e o desejo de aparecer bem – e um aspecto psicológico, ligado ao processamento, que consiste na aplicação de uma regra que corrigiria o erro. O que há de peculiar na hipercorreção é que ela se aplica a um dado que parece um erro, mas não é.

Seja o seguinte caso: a sociedade condena pronúncias como paiaço (palhaço), teia (telha), fio (filho). Acontece que as formas teia e fio (e outras) tanto podem ser variantes populares de telha e filho quanto formas ‘corretas’: teia (de aranha), fio (de cabelo).

Um falante inseguro em relação a sua língua, mas interessado em uma boa apresentação de si, tentará ser sempre correto. Ciente de que as formas com /y/ são condenadas, ele as substituirá pela forma lh (aplica uma regra!). Em vez de fio, dirá filho, mas também, em vez de teia (de aranha), telha, e, em vez de pia (do banheiro), pilha. Já ouvi falantes rurais de origem italiana dizerem fortalha por fortaia (palavra para omelete, em um dos dialetos). Ou seja: a regra foi aplicada mesmo em palavra de outra língua!

O fenômeno da hipercorreção raramente é tratado na escola, porque nela, infelizmente, as formas populares são simplesmente tratadas como erros (deveriam ser tratadas como variantes regidas por gramáticas particulares). Mas há casos de evidente hipercorreção. O mais notório é a dificuldade centenária de convencer falantes a não empregar flexões com verbos impessoais. Pois é da hipercorreção que resultam formas como faziam 15 dias e haviam / haverão muitas pessoas. Mais recentemente, começou a se disseminar a forma tratam-se de (questões, problemas)

A explicação é clara: geralmente se condena a ‘falta’ de concordância (Os menino foi, Nós pega o peixe). Que, na verdade, é outra regra! Como consequência, mais ou menos inconscientemente, o falante que quer ser correto ‘pensa’ que deve usar o máximo possível de formas plurais. E as emprega mesmo quando não é o caso.

Ganharíamos muito se não tivéssemos preconceitos e se, em consequência, tratássemos as línguas como objetos sociais que são e ainda como objetos estruturais, ou semiestruturais, que também são. Não há fio solto em nenhuma variedade.

Sírio Possenti

Departamento de Linguística,
Universidade Estadual de Campinas