A coluna de fevereiro, intitulada ‘A quem interessa o ceticismo sobre o aquecimento global?’, teve número recorde de comentários de leitores, a maioria pouco elogiosos. Agradeço a Tiago M. Murakani, Leci M. Lopes e Angelo C. Neto, que enviaram mensagens ponderadas por e-mail. Diante da intensa reação suscitada pelo tema, decidi dedicar a coluna deste mês às respostas aos principais pontos comentados.
Não, não sou “mais um membro do IPCC”. Mas o Brasil está bem representado nessa entidade, por alguns dos melhores cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre outros. Por ser membro da Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil ratifica as conclusões do IPCC, assim como outros 193 países.
O IPCC não faz medidas ou pesquisas de campo. Os milhares de cientistas e técnicos que o compõem compilam, revisam e analisam dados de pesquisas já publicadas em revistas científicas com conselho editorial, ou séries de dados disponíveis em arquivos públicos. A maioria desses profissionais trabalha em institutos oficiais de pesquisa, universidades e centros do gênero. O diferencial é que trabalham de forma simultânea, integrada e em escala global, o que nunca havia sido feito antes.
Esses pesquisadores criam novas ferramentas, apontam lacunas e, sobretudo, desenvolvem mais e melhores modelos de previsão de clima, baseados nos dados meteorológicos disponíveis. Não são pagos por fora para fazê-lo: ou esta é uma nova atividade em seu trabalho rotineiro, ou, como acontece com a maioria, é realizada de forma voluntária. Pelos serviços prestados, ganharam o prêmio Nobel da Paz em 2007 – e muitos inimigos.
Curioso é que adoramos a ciência que nos garante que amanhã vai dar praia, mas se a mesma ciência, com as mesmas ferramentas, prevê um futuro climático sombrio, é execrada. O importante é perceber que não existe ‘a turma do IPCC’: o que eles nos comunicam não é a opinião de um grupinho de ativistas ressentidos, mas a síntese dos melhores dados científicos disponíveis. Quando há unanimidade, é a dos dados. Como diria um locutor de rádio das antigas, é “a voz da ciência”. E, por isso mesmo, incomoda tanto que essa voz traga más novas.
Argumentos em xeque
Mas quais são os argumentos dos irados e céticos leitores? Um dos principais é que estaríamos vivendo apenas mais um ciclo natural, como já houve muitos no passado. É verdade, a Terra já foi bem mais quente e mais fria do que hoje, e algumas dessas mudanças foram bruscas. Mas bruscas em escala geológica, de milhões de anos. Esse tempo foi suficiente para extinguir muitas espécies, mas também para as demais se adaptarem.
Já as mudanças que estamos causando e testemunhando – e as piores ainda que os estudiosos preveem – podem nos parecer uma rampa suave, mas geologicamente são uma parede e suscitam sérias dúvidas quanto à possibilidade de nossa própria espécie se adaptar a tempo.
Outro argumento: os dados foram manipulados, fraudados. De onde saiu essa grave acusação? De um ataque cibernético aos provedores de e-mail de centros de estudos climáticos que integram o IPCC nos quais milhares de mensagens eletrônicas foram roubadas. Quem bancou isso bancou também uma legião de pessoas que rastrearam essa pilha de documentos em busca de algo comprometedor. E conseguiram: em uma mensagem a um colega, um pesquisador se felicitava por ter bolado um macete (a trick, no original em inglês) para tratamento da montanha de dados que tinha para processar.
Trick significa macete, truque, achado. Para quem não sabe, cientistas manipulam dados o tempo todo, assim como você manipula o seu teclado para escrever uma mensagem. Como comparar dados de temperatura oceânica de centenas de estações diferentes? Calculando a média aritmética? A mediana? A média ponderada? Com dados em escala linear, logarítmica? Haja macete.
Mas, nesse caso, trick foi interpretado como fraude, em um atalho semântico que foi repetido à exaustão e ofuscou o crime original de invasão de privacidade. E a estratégia funcionou. A ONU vai fazer uma auditoria ou algo parecido e, com um único e-mail, roubado, o IPCC foi colocado na defensiva. Vida de cientista é fogo: te encomendam um trabalho, você faz o melhor que pode e, quando não gostam da resposta, te jogam aos leões.
E acharam também outro pecado: o IPCC teria errado ao prever que as geleiras do Himalaia vão desaparecer até 2050. Que coisa feia… Ok, mas quando será então? 2085? Que diferença isso faz para todas as geleiras que já sumiram? Mais uma cortina de fumaça para esconder o principal.
Mas, afinal, como são feitas essas previsões? Projetando para datas futuras o resultado da taxa passada e presente de perda de massa das geleiras no mundo todo, incluindo os polos. Isso é o que interessa. As geleiras estão sumindo em escala global há décadas e isso vai afetar o regime dos rios, a segurança alimentar, o aproveitamento hidrelétrico, a frequência e a intensidade das secas, atingindo diretamente um sexto da população mundial.
Teoria e religião
Seguindo com os argumentos: a unanimidade não é garantia de nada. O cientista italiano Galileu Galilei estava só, mas estava certo; o aquecimento é só uma teoria e se tornou uma religião. Acho que respondi acima sobre a questão da unanimidade. E deixemos Galileu descansar em paz. Se vivo estivesse, estaria apoiando os colegas cientistas e não promovendo a desinformação.
Sobrou ’teoria’ e ‘religião’. Por que uma teoria é aceita? Porque consegue explicar fenômenos observáveis de forma mais satisfatória ou abrangente que a teoria anterior e/ou oferece uma explicação teórica irrefutável, mesmo que ainda não comprovável experimentalmente por limitação técnica.
Assim, admite-se que o Big Bang existiu porque a teoria que incorpora essa hipótese explica a maior parte daquilo que os astrofísicos observam, e porque ela ainda não foi desbancada por dados que a contradigam e possam ser observados, de forma reprodutível e independente, por diferentes pesquisadores.
Da mesma forma, aceita-se a teoria da evolução por falta de provas concretas e convincentes que expliquem de outro modo o surgimento, a extinção e a transformação dos seres vivos. Mas os mesmos grupos criacionistas dos Estados Unidos que conseguiram que a evolução fosse apresentada nas escolas como uma teoria entre outras – alçando assim um dogma criacionista ao patamar da teoria – estão agora pressionando com sucesso para que a questão do aquecimento seja apresentada da mesma forma.
Para uma teoria tão novinha, deve ser uma honra estar no calabouço ou no pódio junto com suas irmãs que defendem o Big Bang e a evolução – e ainda com um Nobel na lapela! Mas confesso que tenho dificuldade de manter a objetividade sobre esse tema: sou ateu – graças a Deus – e procuro manter prudente distância dos corpos de ofício que historicamente primaram por insistentes tentativas de silenciar ou aniquilar o meu.
Enquanto isso, o IPCC, sempre ele, concluiu recentemente que não há qualquer fenômeno natural conhecido, como manchas solares, erupções vulcânicas etc., que possa explicar o conjunto das evidências climáticas obtidas e confirmadas até aqui (o famigerado consenso dos dados).
Esses dados mostram que a Terra se aqueceu significativamente nos últimos 50 anos em todos os continentes. O aquecimento foi de 0,5ºC desde 1980 e, no momento, é de 0,16ºC por década, com taxa superior a essa em latitudes elevadas, como no Ártico. Com o calor, o mar está mais quente e, devido à evaporação, mais salino, e a umidade do ar aumentou. No entanto, se for considerada a emissão de milhões de toneladas de dióxido de carbono e metano na atmosfera por atividades humanas, tudo se encaixa.
Naturalmente, sempre pode aparecer alguém com dados verificáveis, robustos, de cobertura global e, sobretudo, inéditos que joguem essa interpretação por terra.
Alguém se habilita? Iurrrrú?
Enquanto isso, minha pergunta continua no ar: a quem interessa o ceticismo sobre o aquecimento global?
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro