Rio Grande do Sul: berço dos mamíferos?

Um dos mais apaixonados debates dentro da paleontologia está vinculado ao surgimento e à evolução dos mamíferos. Ainda existe muita discussão e indefinição acerca de como eram os protomamíferos, ou seja, as espécies que antecederam os ‘vertebrados peludos’. Achados recentes feitos no Brasil por pesquisadores argentinos e brasileiros têm jogado ‘mais lenha na fogueira’ e mudado a perspectiva dos estudos sobre o tema realizados até agora.

Como se define um mamífero?

Ainda existe muita discussão sobre como eram as espécies que antecederam os mamíferos

Para situar o problema, precisamos primeiramente perguntar: como se caracteriza um mamífero? Relembrando um pouco do que aprendemos na escola, os mamíferos se distinguem dos demais vertebrados, como os répteis, por possuírem pelos, encéfalo desenvolvido e glândulas mamárias (onde é produzido o leite com o qual alimentam seus filhotes). Sem contar com o coração de quatro cavidades, conforme observado pelo cientista sueco Carolus Linnaeus (1707-1778) quando, em 1758, propôs a classe Mammalia.

Até que essa primeira parte foi fácil. Vamos tentar então usar essas características para os mamíferos fósseis… Agora complicou, pois todas as feições listadas acima estão no dito ‘tecido mole’ e não se preservam nos ossos encontrados nas camadas de sedimentos.

Com esse problema na mão, os paleontólogos começaram a procurar características nos ossos que pudessem diferenciar os mamíferos dos não-mamíferos. Chegaram a propor algumas, como a articulação entre mandíbula e crânio feita por uma parte expandida do osso dentário que se encaixa em uma depressão de um pequeno osso da lateral do crânio chamado esquamosal. Essa articulação é completamente distinta da observada nos répteis, por exemplo.

Também foram levantados como feições tipicamente de mamíferos a presença de três ossículos no ouvido médio – o malleus (bigorna), incus (martelo) e o estribo – e os dentes pós-caninos com as raízes divididas.

Estava tudo bem até o momento em que fósseis com algumas dessas características, mas não todas, foram descobertos. Onde classificar essas novas formas?

Na tentativa de organizar um pouco a questão da classificação dos mamíferos, uma linha de pensamento – hoje majoritária – na paleontologia propõe que a classe Mammalia seja definida como o grupo formado pelo ancestral comum dos monotremos, marsupiais e placentários (os três grandes grupos de mamíferos existentes atualmente) e todos os seus descendentes.

Assim, todas as demais formas fósseis que não fazem parte desse grupo, mas estão proximamente relacionadas aos mamíferos, passam a integrar o agrupamento denominado Mammaliaformes. A questão, agora, passa a ser: qual dos grupos basais de Mammaliaformes estaria mais proximamente relacionado aos mamíferos? A resposta para essa pergunta está vindo de depósitos do Brasil, mas especificamente do Rio Grande do Sul.

Afloramento Faxinal
Afloramento Linha São Luiz, em Faxinal (RS), de onde sai a maior quantidade de fósseis estudados pelos pesquisadores brasileiros e argentinos (foto: Marina Bento Soares).

Novas espécies brasileiras

Ao repousar no terreno durante uma atividade de campo em 2000, o pesquisador argentino José Bonaparte – Bona, para os colegas – não imaginava que iria fazer uma das principais descobertas do início deste século para a paleontologia do Brasil. A equipe estava coletando fósseis nos depósitos chamados de Formação Caturrita (RS), cuja idade varia em torno de 220 milhões de anos. Junto com colegas da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, Bona encontrou pequenos ossos esbranquiçados no meio da rocha avermelhada.

Escavações realizadas nos anos seguintes – que incluíram também pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – revelaram uma grande quantidade desses ‘pequenos animais’, hoje classificados em quatro novas espécies: Riograndia guaibensis e Irajatherium hernadezi, ambas do clado Tritheledontidae (considerado por alguns como o mais próximo de Mammalia); e Brasilodon quadrangularis e Brasilitherium riograndensis, classificados no grupo Brasilodontidae. Todos são de pequeno tamanho, feição comum dos primeiros protomamíferos.

O primeiro a ser descrito foi Riograndia guaibensis, que é a forma mais comumente encontrada nos depósitos. De crânio curto, essa espécie se destaca pela confluência da órbita e da fenestra (abertura) temporal – devido à perda da barra óssea que separava essas duas aberturas – e pela dentição composta por três dentes incisivos na arcada inferior, todos procumbentes (voltados para frente e para fora), e dentes pós-caninos espatulados, que já apresentam um início de bifurcação de suas raízes – característica comum dos mamíferos.

O Irajatherium é uma forma mais rara. Conhecida apenas por um úmero, um fêmur, duas mandíbulas e uma arcada superior incompleta, essa espécie possui os dentes pós-caninos superiores comprimidos transversalmente e os pós-caninos inferiores com uma cúspide (elevação) central mais desenvolvida, seguida de três menores.

Os pesquisadores defendem que o grupo Brasilodontidae – e não o Tritheledontidae – é o mais proximamente relacionado aos mamíferos

Sem dúvida, os achados mais interessantes no momento são Brasilodon e Brasilitherium, todos conhecidos por uma espécie apenas. O Brasilodon tem um crânio relativamente baixo, com a caixa craniana bem expandida. O Brasilitherium exibe uma série de ossos fusionados na caixa craniana, o que é considerado uma característica mais derivada dentro da evolução desses protomamíferos.

Além de uma dentição bem semelhante à dos primeiros mamíferos (como Morganucodon), essas duas formas compartilham outras características com os animais desse grupo, incluindo a articulação da arcada inferior com o crânio. Por essas e outras, os pesquisadores argentinos e brasileiros defendem que o grupo Brasilodontidae – e não o Tritheledontidae – reúne as formas mais proximamente aparentadas aos mamíferos.

Crânio de Brasilitherium
Crânio de ‘Brasilitherium riograndensis’, espécie que, junto com ‘Brasilodon quadrangularis’, integra o grupo mais proximamente relacionado aos mamíferos, segundo a análise dos pesquisadores argentinos e brasileiros (foto: Marina Bento Soares).

Infelizmente até o momento não foram descritas detalhadamente outras partes do esqueleto desses protomamíferos gaúchos, o que poderia trazer mais informações sobre os passos evolutivos dados por esses animais até o surgimento dos primeiros mamíferos.

Se os pesquisadores argentinos e brasileiros estiverem corretos e o grupo Brasilodontidae for mesmo o mais proximamente relacionado à classe Mammalia, podemos imaginar que talvez os primeiros mamíferos estejam nessas rochas do Rio Grande do Sul. Candidatos já existem. Agora é esperar a continuação das pesquisas.

 

Confira mais imagens da pesquisa

 

Alexander Kellner
Museu Nacional / UFRJ
Academia Brasileira de Ciências

 

Paleocurtas

As últimas do mundo da paleontologia
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Acaba de ser publicada na Science a descrição de um novo dinossauro primitivo. Segundo Sterling J. Nesbitt (American Museum of Natural History) e colegas, Tawa hallae, encontrado em rochas triássicas do Novo México (Estados Unidos), permite estabelecer que durante aquele tempo a fauna de dinossauros carnívoros dos Estados Unidos não era endêmica e eventos de dispersão intercontinental prevaleciam.

Mariana Brea (Centro de Investigaciones Científicas Diamante, Argentina) e colegas publicaram uma revisão sobre a floresta de Agua de La Zorra, que foi a primeira floresta petrificada encontrada in situ na América do Sul. Uma curiosidade: a mesma foi descoberta por Charles Darwin em 1835. Mais informações podem ser obtidas na Revista de la Asociación Geológica Argentina, onde o artigo foi publicado.

Foi aberta neste mês a exposição Fósseis do continente gelado – o Museu Nacional na Antártica, onde são apresentados alguns dos exemplares coletados pelo projeto Paleoantar em 2007 na ilha de James Ross. A mostra fica até o final de abril de 2010 no Museu Nacional/UFRJ, em São Cristóvão, Rio de Janeiro.

Mark Young e Marco B. de Andrade (Universidade de Bristol, Inglaterra) publicaram no Zoological Journal of the Linnean Society a redescrição de um crocodilomorfo marinho da Alemanha chamado de Geosaurus giganteus. Segundo os autores, o material atribuído a essa espécie representa, na realidade, três formas distintas, que são redefinidas no trabalho.

A Revista Brasileira de Paleontologia (agora indexada na base ISI) acaba de publicar uma revisão da ocorrência de trepadeiras fossilizadas. A diversidade desse grupo de vegetais no registro geológico levou o autor Robyn Burnham (Universidade de Michigan, EUA) a supor que elas devem ter exercido, pelo menos durante a Era Paleozoica, o mesmo papel importante que exercem hoje em dia nos ecossistemas que envolvem as florestas tropicais.

Stephen Brusatte (American Museum of Natural History) e colegas reanalisaram uma espécie de dinossauro carnívoro da Mongólia Interior descrita há quase 50 anos: Chilantaisaurus maortuensis. Eles conseguiram determinar que esse dinossauro representa um novo gênero (Shaochilong) e é a primeira ocorrência confirmada na região do grupo Carcharodontosauridae – que se pensava endêmico do supercontinente Gondwana, na Ásia. O trabalho foi publicado com destaque na Naturwissenschaften