Precisei viajar ao Peru, em maio passado, para saber, pela imprensa local, que cerca de mil cadáveres de golfinhos apareceram no litoral daquele país nos primeiros meses de 2012. Parece muito – e é. Mas os técnicos da ONG peruana Organización Científica para Conservación de Animales Acuáticos (Orca) estimam que ao longo do verão 2011-2012 o total de golfinhos mortos chegou a 3 mil.
O aparecimento de algumas dezenas de golfinhos mortos seja lá onde for costuma ser notícia global, com especulações sobre as causas do fenômeno, que podem ser muitas: epidemia de vírus ou bactéria, intoxicação por metal pesado, óleo ou cianotoxina, inanição, desorientação devida a alterações eletromagnéticas, entre outras. O caso relatado, apesar da dimensão inédita, não foi mencionado em nossa grande imprensa e – que eu saiba – em nenhuma outra.
Talvez seja coincidência, mas todos esses registros de golfinhos mortos ocorreram no litoral norte do Peru, onde se concentram as atividades de prospecção e exploração petrolífera marinha naquele país.
O Instituto del Mar del Perú (Imarpe), órgão do governo peruano, declarou que a mortalidade em massa de golfinhos não se devia a qualquer das causas apontadas acima nem à asfixia em rede de pesca, colisão ou falta de alimento. Em relatório, o Imarpe menciona o total de 877 golfinhos mortos desde fevereiro. Devido ao estado de decomposição dos animais, 42 exemplares foram revisados de forma geral e apenas dois exemplares submetidos a autópsia, diz o documento.
As evidências mostram que as mortes ocorreram em um lapso de 2 a 3 dias, sugerindo um agente causal que atua de forma aguda, causando morte rápida. Apesar da magra amostragem, o Imarpe apressou-se em afirmar que não havia evidências científicas que permitissem associar a mortandade de animais aos testes acústicos realizados de forma rotineira pela indústria petrolífera no litoral norte do país.
Curioso: quando se faz esse tipo de teste, cria-se na região uma área de exclusão para navegação e pesca, ampla e previamente divulgada. Possivelmente porque há algum risco associado. O problema é que não há como cercar a área afetada pelos testes nem avisar os mamíferos marinhos, que não ouvem boletins de rádio ou comunicados oficiais.
A confusão aumentou com o aparecimento de centenas de pelicanos mortos nas mesmas áreas do litoral e também nos primeiros meses do ano. Dessa vez, a causa mortis era clara: fome. Não havia nenhum alimento no estômago ou intestino das infelizes aves marinhas, fato atribuído ao aumento da temperatura do mar e à consequente migração de peixes, que são o sustento dos pelicanos. Ninguém explicou por que os golfinhos conseguiam achar alguma comida e os pelicanos não.
Bolsa acústica
O festival de versões oficiais desencontradas que se seguiu à divulgação do relatório do Imarpe incluía a seleção natural como causa da morte dos golfinhos, embora nenhum porta-voz tenha arriscado explicar por que esse poderoso agente agiria de forma tão aguda e seletiva.
Na tentativa de pôr fim às especulações, o diretor científico do Imarpe, Raúl Castillo Rojas, declarou que análises feitas em amostras dos golfinhos mortos no Centro de Mamíferos Marinhos dos Estados Unidos indicaram a presença de um vírus, Morbilivirus, que se pareceria com o distemper canino. Mas esse centro de pesquisa, procurado por duas redes de televisão peruanas, disse desconhecer qualquer pedido de análise feito pelo Imarpe. Apesar disso, o Dr. Rojas continua no posto de diretor científico da instituição.
O veterinário Carlos Yaipén-Llanos, diretor da ONG Orca, tem uma versão bem diferente. Segundo ele, a morte por Morbilivirus produz líquidos nos tecidos e não gases; e os exames histopatológicos realizados pela ONG em cadáveres dos golfinhos revelaram a presença de bolhas de ar em órgãos como fígado, rim e vasos sanguíneos, hemorragia no ouvido médio, fraturas nos ossos perióticos e enfisema pulmonar disseminado, entre outras evidências da chamada síndrome de descompressão, causada por impacto sonoro, agudo e fatal.
Ainda segundo a ONG, o impacto acústico é causado pelo uso de sonares de profundidade, muitas vezes de ar comprimido, na prospecção de petróleo no mar. As frequências sonoras usadas variam segundo as características físicas (profundidade, relevo) e oceanográficas da zona em exploração.
O princípio – emissão de som e captação do seu eco – é o mesmo usado por golfinhos, morcegos e outros animais para comunicação e orientação. No caso dos golfinhos, as características do eco, como tempo de retorno e grau de atenuação, trazem informações para localizar cardumes de peixes, indicar a presença de obstáculos ou massa d’água com densidade diferente daquela em que o animal está etc.
No caso dos sonares usados em prospecção petrolífera, as mesmas informações são usadas, como era de se esperar, para indicar a possível presença de depósitos de petróleo no fundo marinho. Embora o princípio seja o mesmo, nesse caso a intensidade do som emitido é muitas ordens de grandeza superior à dos discretos cochichos dos golfinhos.
O princípio do sonar explicaria por que nem todos os organismos marinhos ao alcance da ‘bolsa acústica’ são prejudicados; só os que emitem ou recebem sons naquela faixa de frequência seriam afetados por problemas como desorientação, hemorragia interna, destruição do ouvido interno e das mandíbulas, descompressão respiratória, presença de bolhas de ar em órgãos internos, derrame cerebral e morte. Ainda bem que todo esse processo ocorre em um período de tempo relativamente curto, pois a dor deve ser intensa. Maiores detalhes apontados pela ONG estão em sua página no Facebook.
Curiosamente, ninguém se lembrou de perguntar às empresas petrolíferas que atuam no país se elas realizaram testes acústicos na região no período em que ocorreu a mortandade em massa de golfinhos. Elas também não vieram a público espontaneamente para comentar o caso, e o governo local se encarregou de eximi-las.
O episódio sugere cumplicidade entre governo e empresas, numa circunstância em que a ciência oficial é amordaçada ou convocada a emitir laudos suspeitos e convenientes. Ficaremos sem saber se é possível fazer testes acústicos em frequências que não detonem o tímpano de mamíferos marinhos carismáticos como golfinhos e baleias. O som tem frequência, o ruído tem muitas e o silêncio, nenhuma.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho,
Universidade Federal do Rio de Janeiro