Se não fosse o relógio atômico…

O Navstar-2 é um dos 24 satélites em órbita da Terra que constituem o segmento espacial do Sistema de Posicionamento Global. Clique na imagem para ver um esquema com todos em órbita (arte: US Air Force).   

O sistema de posicionamento global (GPS, na sigla em inglês) está cada vez mais presente em nosso dia-a-dia. É um belo exemplo de transferência do conhecimento científico para a produção tecnológica, e a rapidez com que novos produtos são desenvolvidos e colocados no mercado segue a lógica do processo de inovação tecnológica contemporâneo.

O sistema GPS tem três segmentos: espacial, controle e usuário. O segmento espacial consiste de 24 satélites em órbita em volta da Terra, a uma altura média de 20 mil quilômetros. Cada um deles transporta um ou mais relógios atômicos, bem como os sistemas eletrônicos e computacionais necessários para a medida de tempo. As órbitas são tais que, em qualquer ponto da Terra, no mínimo quatro satélites estão acima da linha do horizonte. Dito de outro modo, no mínimo quatro satélites são visíveis para um observador em qualquer ponto da Terra, e em qualquer momento.

O segmento de controle é formado por uma estação mestra, instalada na base da Força Aérea dos Estados Unidos, no Colorado, além de várias estações secundárias em diferentes países com equipamentos similares aos instalados nos satélites.

O segmento usuário, por fim, consiste simplesmente nos receptores comerciais instalados em aviões, carros, telefones móveis e nos equipamentos popularmente conhecidos como GPS. Os receptores detectam, decodificam e processam os sinais emitidos pelos satélites. Atualmente existem mais de 100 tipos de receptores, com diferentes capacidades operacionais.

Como funciona o GPS
Os satélites emitem continuamente sinais que informam a hora e a posição no momento da transmissão. Esses sinais chegam às bases de controle terrestre e aos receptores comerciais viajando à velocidade da luz – 300 mil quilômetros por segundo. Portanto, é possível calcular a distância entre o satélite e o receptor multiplicando-se a velocidade da luz pela diferença entre o tempo da chegada do sinal no receptor e o tempo da saída no satélite.

Os receptores de GPS, como o modelo acima, detectam, decodificam e processam os sinais emitidos pelos satélites, de forma a apontar com precisão sua localização (foto: Wikimedia Commons).

Ao se medir simultaneamente as distâncias de um determinado ponto em relação a quatro satélites, é possível determinar latitude, longitude, altitude e o tempo local do receptor naquele ponto. É por isso que as órbitas foram escolhidas de modo que, em qualquer ponto da superfície da Terra, em qualquer momento, um receptor visualize no mínimo quatro satélites.

Para quem domina os conceitos físicos e matemáticos pertinentes, a idéia é simples, mas sua realização é extremamente complexa. Em primeiro lugar, os tempos de todos os satélites têm que estar sincronizados o mais próximo possível da perfeição. Pequenos erros na sincronização implicam em grandes erros na localização dos receptores. Se desejarmos, por exemplo, medir a posição do receptor com um erro inferior a um metro, o erro na sincronização não pode ser superior a 4 nanossegundos (nanossegundo é a bilionésima parte do segundo).

Tal precisão só é possível com o uso de relógios atômicos. Para se ter uma idéia do que isso significa, basta fazer a correspondência para a medida de distância. Se o raio da Terra fosse medido com a mesma precisão, a retirada de um átomo da superfície seria detectada.

Tique-taque atômico
Qualquer medida de tempo está associada à medida da freqüência de um fenômeno periódico. Um exemplo clássico é o do físico italiano Galileu Galilei (1564-1642) que, nos seus primeiros experimentos, usou a freqüência das batidas do seu coração para medir o período de oscilação dos seus pêndulos. O tique-taque desse relógio biológico pode ser ouvido com um estetoscópio.

Os antigos relógios de parede transformavam os períodos dos seus pêndulos em medida de tempo. A freqüência era perceptível pelo tique-taque sonoro. Os relógios que costumamos usar em nossos pulsos são fabricados com um cristal de quartzo. O tempo é medido a partir da freqüência de oscilação resultante do efeito piezoelétrico . O romântico tique-taque desapareceu, mas a precisão aumentou.

A arte compara o funcionamento dos relógios de cristais de quartzo e dos relógios atômicos (imagem: Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada / IF-USP).

Em 1949, a freqüência de tunelamento do nitrogênio na molécula de amônia (NH 3 ) foi utilizada para a fabricação do primeiro relógio atômico. Nessa molécula, o átomo de nitrogênio pode ocupar mais de um lugar. Ele muda de um para outro por meio de um processo de tunelamento , com freqüência igual a 24 GHz. É a constância dessa freqüência que possibilita seu uso em um relógio atômico.

A idéia era revolucionária, mas o resultado não foi animador: o relógio era apenas um pouco melhor do que os existentes. Seis anos depois, o físico inglês Louis Essen (1908-1997), em colaboração com Jack Parry, inventou o modelo que até hoje é utilizado como padrão, confeccionado com o isótopo 133 do átomo de césio (Cs-133). Embora a literatura tenha consagrado a denominação relógio atômico, esse instrumento é na verdade um padrão atômico de freqüência. Na prática, ele serve para calibrar cristais de quartzo que de fato funcionam como registradores de tempo. Veremos mais adiante quais são os componentes básicos de um relógio atômico.

Funcionamento quântico
O princípio de funcionamento desse relógio baseia-se na teoria quântica. No mundo microscópico, onde vale essa teoria, a ocupação de espaço e a energia deixam de ser contínuos. Um elétron não pode ocupar um espaço qualquer no interior de um átomo, nem possuir qualquer valor de energia: há regras bem determinadas para isso.

Usemos uma analogia para uma melhor visualização da questão. Imagine um prédio muito especial, sem escadas ou elevadores. O acesso só é possível externamente, por meio de uma escada. Nesse caso, as pessoas só poderão se encontrar nos pisos dos andares. Jamais encontraremos alguém entre os andares, como seria o caso se existisse uma escada interna.

Nesse prédio, para ir de um andar superior para outro inferior, basta pular – a gravidade faz o serviço. Já para ir de um andar inferior para outro superior, temos que ter energia para o salto. É algo assim que ocorre no interior de um átomo. Os físicos costumam denominar de níveis atômicos – ou níveis de energia, ou ainda estados eletrônicos – os “andares” no interior de cada átomo. Em seu estado normal, cada espécie tem seus níveis bem determinados e imutáveis. Essa imutabilidade é que permite a existência do relógio atômico.

O elétron necessita de energia para atingir um nível superior. Quando isso ocorre, diz-se que o átomo está em um estado excitado. Depois de aproximadamente 10 nanossegundos, o elétron retorna ao nível inferior e libera a energia recebida. O átomo retorna ao seu estado de equilíbrio, mais conhecido pela denominação estado fundamental.

A energia liberada aparece sob a forma de um fóton, partícula associada a uma onda eletromagnética, de freqüência proporcional à separação de energia dos dois níveis eletrônicos. A energia fornecida (e liberada) também é proporcional à separação de energia dos níveis. Esse fenômeno é denominado ressonância eletrônica.

Louis Essen e Jack Parry ao lado do primeiro relógio atômico, construído por eles em 1955 (foto: reprodução).

A ressonância ocorre porque a onda eletromagnética incidente tem a mesma freqüência definida pela separação dos níveis atômicos. Como os níveis são praticamente imutáveis, a freqüência ressonante – ou freqüência de transição de um determinado estado para outro – é constante. Não há nada mais interessante para um relógio de precisão do que a existência de uma freqüência quase imutável.

Nova definição de segundo
A estrutura eletrônica do Cs-133 apresenta um nível – conhecido como nível hiperfino do estado fundamental – que pode ser excitado com microondas na freqüência de 9192631770 Hertz, ou cerca de 9,2 gigahertz. Não foi preciso mais do que uma dezena de trabalhos posteriores ao invento de Essen e Parry para demonstrar que a transição do césio tinha todas as propriedades para constituir um padrão de medida de tempo.

Em 1967, a 13ª Conferência Geral de Pesos e Medidas adotou uma nova definição para o segundo, a unidade de tempo do Sistema Internacional. De acordo com essa definição, o segundo é a duração de 9192631770 períodos da radiação correspondente à transição entre os dois níveis hiperfinos do estado fundamental do átomo de césio 133.

O modelo mais difundido de relógio atômico contém uma fonte de átomos de césio em estado gasoso, um gerador de microondas para excitar os átomos e um oscilador de quartzo para a contagem do tempo. O processo operacional envolve, entre outras coisas, a passagem do feixe atômico através de uma cavidade de microondas. É nesse transcurso que os átomos são observados para a medida do tempo.

Relógio atômico de césio construído no Instituto de Física da Universidade de São Paulo em São Carlos (foto: reprodução).

Dois fatores dificultam a qualidade da medida. O primeiro é a temperatura dos átomos. Quanto maior for ela, maior será o movimento dos átomos e menos precisa será a medida da freqüência de ressonância. O ideal seria que os átomos pudessem manter-se imóveis, mas isso é impossível. A alternativa é baixar a temperatura dos átomos tanto quanto possível. O outro fator de imprecisão é o tempo durante o qual o átomo é observado na cavidade ressonante. Para melhorar essa medida, é interessante aumentar o tempo de observação.

Chafariz atômico
Para enfrentar essas dificuldades, vários laboratórios em diversos países, incluindo os Institutos de Física da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), estão investigando uma revolucionária solução conhecida como chafariz atômico.

Esse termo foi inspirado no que acontece no verdadeiro chafariz: a água expelida pela fonte sobe até certa altura, pára e começa a cair. No caso atômico, os átomos são inicialmente resfriados com o auxílio de raios laser até atingirem uma temperatura próxima do zero absoluto; depois, são lançados verticalmente para cima, no interior da cavidade ressonante. A baixa temperatura aumenta a resolução na medida da freqüência e o lançamento vertical para cima permite que o átomo seja examinado duas vezes – uma na subida e outra na descida.

Essa história é muito interessante, mas não é tudo e nem termina aqui. Quando iniciei a coluna, pretendia falar sobre o que a teoria da relatividade tem a ver com o GPS. Quando me dei conta, estava descrevendo o relógio atômico… Claro, sem o relógio atômico o GPS seria inviável. Mas sem a relatividade, o que seria do GPS? Por causa das correções resultantes das teorias da relatividade restrita e geral, a precisão do GPS encontra-se entre 5 e 10 metros. Se essas correções não fossem aplicadas, o erro de localização seria superior a 11 quilômetros por dia!


Carlos Alberto dos Santos
Núcleo de Educação a Distância
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul
28/03/2008