Sempre as línguas!

O que aconteceu em Paris há poucos dias ocasionou a produção, fundamentalmente, de três discursos:
a) apoio total aos humoristas do Charlie Hebdo, posição representada por “Je suis Charlie”; mais amplamente, tratou-se de apoio total à total liberdade de pensamento e expressão (especialmente na imprensa);
b) apoio à liberdade de expressão e à equipe do jornal, seguida da adversativa ‘mas…’, posição representada por “Je ne suis pas Charlie” (defesa da liberdade e pedido de sensibilidade, de respeito às diferenças etc.);
c) oposição clara a determinados trabalhos dos humoristas, posição representada ora por “Je ne suis pas Charlie” (a diferença está nos argumentos), ora por “Je suis X”, em que X é outro nome, que ora foi Coulibaly, ora Mohamed, como em algumas manifestações fora da Europa.

Mortes sempre são um horror, mas é bem claro que elas têm efeito midiático maior quando as vítimas são jornalistas e europeus ou americanos (2 mil mortos na Nigéria valem muito menos do que alguns jornalistas franceses), seja porque eles fazem os jornais, seja porque a imprensa é um índice, um indício, um sinal muito representativo da democracia.  

De tudo o que li sobre o recente episódio em Paris, o que mais me espantou foi uma breve matéria de Ricardo Bonalume Neto, que adotou diversas teses pouco informadas e de uma nitidez ideológica brutal

De tudo o que li sobre o recente episódio em Paris, o que mais me espantou foi uma breve matéria de Ricardo Bonalume Neto (Folha de S. Paulo, 16/01/2015), que adotou diversas teses pouco informadas e de uma nitidez ideológica brutal, embora esteja na moda há algum tempo pensar e dizer que só os outros são ideológicos. 

Basicamente, Bonalume confundiu ‘explicar’ com ‘defender’, quando se referiu a acadêmicos (palavra que ele aspeou) que, chamados, até por jornalistas, a explicar o acontecimento, lembraram os problemas dos imigrantes africanos na Europa, a intolerância francesa (e de outros países) com os muçulmanos, efeitos, mesmo que longínquos, do colonialismo etc. 

Essa confusão não é tão incomum (os linguistas a conhecem bem, porque, quando dizem que “os peixe” é construção que segue uma regra, são acusados de defender que essa concordância seja ensinada na escola). 

Mas Bonalume se excedeu ao adotar a tese monstruosa segundo a qual os colonizadores só fizeram bem aos colonizados: “Aliás, os jovens países até deveriam agradecer aos “opressores” [aspas dele!] por coisas que nunca tinham visto – portos, ferrovias, rodovias, edifícios, escolas, hospitais, luz elétrica, vacinas, antibióticos etc.”. Como se sabe, não houve genocídio, escravidão, apartheid, nada disso. Só choramingo dos colonizados, que não perceberam o bem que lhes era feito.

Mas meu ponto é outro, um dado linguístico, onde todos escorregam sempre. Na verdade, nem sei bem como interpretá-lo, tão descuidada é a redação ou, alternativamente, tão desinformado é o fato – ou ambas as alternativas.

A passagem é (vem na continuação da lista dos “bens” deixados aos colonizados): “Ou mesmo ‘mesa’ ou ‘sapato’, duas palavras que ainda querem dizer a mesma coisa na língua lingala, do Congo”, escreve ele. 

Mas quais são as duas palavras em lingala? São as mesmas duas palavras portuguesas citadas? E são sinônimas em lingala? Bonalume cita, não explica, não informa.  

Mas o argumento pretende ser certeiro, e definitivo: aqueles africanos primitivos não distinguem em sua língua (e, assim, quem garante que as distinguem quando as veem) dois referentes tão diferentes, mesa e sapato. Desconfio que ele errou grosseiramente. 

 

Cão e pacote

Mas vou arriscar uma interpretação. Se estiver errada, uso-a com o pretexto para discutir uma ideia há muito refutada, mas que resiste: a de que povos primitivos (que precisam ser colonizados para aprender pelo menos alguma coisa) são tão primitivos que suas línguas contêm palavras que indicam que suas visões de mundo são precárias demais. 

É comum que se pense que cada palavra deve se referir a uma coisa, ou a uma classe de coisas. Além disso, cada falante (ou membro de uma cultura) é tentado a achar que, se outras línguas não oferecem sinônimos perfeitos, elas é que são estranhas. Além disso, pensa-se, ainda, que tais fatos ocorrem com as línguas ditas ‘primitivas’. Aparentemente, Bonalume pensa que é o fim do mundo que uma língua empregue a mesma palavra para ‘mesa’ e ‘sapato’. 

Mapa África
Distribuição geográfica do lingala, com as regiões onde é língua materna (verde-escuro) e as demais regiões onde é usada. (imagem: Wikimedia Commons)

Há duas maneiras de refutar tais ‘pensamentos’: uma é teórica, filosófica, doutrinária: cada língua é um sistema que recorta o mundo a sua maneira; nenhuma equivale a nenhuma outra. Portanto, nenhuma diferença é sintoma de inferioridade, apenas de diferença cultural, de visão de mundo etc. Mas esse argumento só afeta quem aceita que o Outro também pode pensar… 

É comum que se pense que cada palavra deve se referir a uma coisa, ou a uma classe de coisas

A segunda maneira é considerar fatos empíricos; talvez eles possam, eventualmente, derrubar uma dessas teses. A mais poderosa consiste em mostrar que o que se supõe que só ocorra ‘naquelas línguas’ ocorre também na do referido ‘pensador’. Por exemplo, em português a palavra ‘cão’ pode designar um animal doméstico, uma parte de uma arma de fogo, o diabo etc. (ver as 12 acepções registradas no dicionário Houaiss). 

Em inglês, ‘dog’ designa tudo o que vem citado abaixo (no dicionário Michaelis) e, provavelmente, ainda mais (não foram mantidas as expressões em que a palavra ‘dog’ aparece).  

n 1 cão. 2 macho de outros animais (raposa, lobo, chacal etc.). 3 cão de chaminé. 4 Tech grampo, gancho, gato, gato de ferro, coração de torno, arrasto. 5 cachorro: pessoa vil, baixa, de má índole. 6 homem, rapaz alegre, galhofeiro. 7 Astr = Dog Star. 8 Amer sl ostentação, espetáculo, presunção. 9 corrida de galgos. 10 sl mulher inconveniente e feia. 11 sl peça que percute a cápsula nas armas de fogo portáteis.

vt 1 perseguir alguém como um cão, seguir insistentemente, andar à espreita de, seguir as pegadas de. 2 seguir o rosto, a pista de, rastejar, caçar. 3 Naut prender.

Veja-se ainda a quantidade de significações diferentes da palavra ‘pack’ , também segundo o dicionário Michaelis (foram mantidas as expressões em que a palavra ‘pack’ aparece). 

Pack1
n 1 fardo, pacote, embrulho. 2 bando, quadrilha. 3 quantidade, porção, grupo, coleção, punhado. 4 matilha. 5 alcateia. 6 baralho. 7 ação ou modo de empacotar. 8 gelo flutuante. 9 Med compressa. 10 Amer maço (de cigarros). 11 mochila. 12 máscara de beleza. 13 Comp compactação de dados. 
vt+vi 1 enfardar, empacotar, emalar, acondicionar, enlatar. 2 acumular, abarrotar, lotar. 3 carregar, pôr carga em. 4 formar maços de cartas. 5 reunir em matilhas, alcateias etc. 6 carregar às costas. 7 despachar, despedir. 8 vedar, guarnecer. 9 envolver em compressas. 10 reunir-se em bandos. 11 fazer pacotes, fardos etc. 12 compactar, comprimir. 13 fazer as malas. 14 Comp condensar, compactar. a pack of cards um baralho. fanny pack capanga: bolsinha que se leva atada à cintura. ice pack compressa de gelo. it is a pack of lies é um amontoado de mentiras. pack it in pare com isso. pack up! suma!, desapareça! to be packed in estar apertado como sardinha. to pack away/off a) empacotar para guardar. b) mandar embora, despedir. to pack down apertar, comprimir, compactar. to pack in a) amontoar, lotar (de gente). b) sl desistir, interromper, renunciar. to pack on all sail Naut largar todo o pano. to pack oneself sumir, dar o fora. to pack out Naut descarregar. to pack up a) guardar suas coisas, preparar-se para partir, arrumar a mala, coll arrumar a trouxa. b) deixar-se acondicionar. c) desistir, renunciar. d) fig morrer, bater as botas. e) coll quebrar, parar de funcionar (máquina). f) terminar o trabalho.

Pack2
vt 1 acumpliciar. 2 maquinar, intentar, conspirar.

 

Diante disso, por que espantar-se se, em uma língua qualquer, uma palavra designa ‘sapato’ e ‘mesa’?

 

Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas