Se você acha que o choro humano não faz parte da linguagem, errou. E, se você pensa que os seres humanos aprendem a sua língua meses após o nascimento, prepare-se para reformular os seus conceitos.
A fala que emitimos e compreendemos é apenas um aspecto da linguagem que nossa espécie desenvolveu de modo inédito na natureza. É só pensar que somos capazes de nos comunicar por escrito (infelizmente, nem todos…), com as mãos e com os músculos da face (os deficientes auditivos que o digam!), e por meio daqueles pontinhos mínimos do alfabeto Braille, que os cegos dominam com tanta maestria.
Mas a fala tem um componente racional e lógico – ao qual nossa civilização costuma dar mais importância – e um componente afetivo e subjetivo, em que às vezes não reparamos. Pense no seguinte par de frases. A primeira: “Hoje é domingo”. A segunda: “Hoje é domingo?”. Graficamente, a única diferença entre elas está no ponto de interrogação da segunda. Mas para o nosso sistema de compreensão linguística, a diferença está na entonação da penúltima sílaba. Se você acentuar bastante essa sílaba, o que era uma afirmativa se torna uma pergunta!
Outro exemplo. Certamente você já vivenciou situações de vida em que um “sim” quis dizer um rotundo “não”, e – ao contrário – outros momentos em que alguém lhe disse um “não” tão doce que se transformou em um convite. No entanto, comprove nos dicionários: a palavra “sim”, em nossa racionalidade ocidental, é diretamente vinculada a uma afirmativa ou consentimento. Mas sua vida lhe mostra que essa palavrinha pode querer dizer “talvez…”, “não acredito” ou mesmo “de jeito nenhum!”.
Bem, essa característica da linguagem humana se chama prosódia e depende de regiões cerebrais já identificadas, localizadas primariamente no hemisfério direito da maioria das pessoas. A prosódia tem componentes gestuais, mas principalmente características sonoras ligadas à entonação com que a fala é produzida.
Choro também é fala
Em certo sentido, o choro faz parte da fala. Os neurolinguistas nem sempre pensaram assim, pois acreditavam que o choro dos bebês dependia inteiramente do ciclo respiratório. O choro era concebido, portanto, como um comportamento meio automático e, à parte seu óbvio significado de desprazer e contrariedade, desprovido de maior semelhança com a fala, cuja articulação é bastante (mas não por completo) independente da respiração.
Conclusões diferentes derivaram de um interessante trabalho que está por aparecer dentro de algumas semanas. O estudo em questão foi realizado por um grupo de pesquisadoras alemãs e francesas lideradas pela psicolinguista Kathleen Wermke, da Universidade de Würzburg, na Alemanha.
O grupo gravou o choro de 60 bebês de 3 a 5 dias de vida: 30 filhos de famílias unilíngues alemãs, e 30 filhos de famílias unilíngues francesas. Cada choro foi analisado quanto às suas propriedades melódicas, isto é, relativas à modulação dos tons produzidos, e às suas características de intensidade, ou seja, relativas às variações de força sonora.
Os resultados do trabalho mostraram que os bebês franceses choram de forma parecida com a fala dos franceses adultos, acentuando a intensidade e o tom mais no final de um ciclo. Em contraste, os bebês alemães choram “em alemão”: aumentam o tom no início do ciclo, e vão diminuindo aos poucos.
Chorar se aprende no útero
A conclusão mais importante do trabalho das pesquisadoras franco-alemãs não se refere à nacionalidade do choro ou da fala, mas ao fato de que, sendo característico da língua nativa, o padrão básico do choro deve ter sido aprendido durante a gestação.
De fato, existem evidências de que a entonação da fala dos adultos, especialmente a fala da mãe, ultrapassa a parede abdominal e é percebida de algum modo pelo feto dentro do útero. Não acontece com a fonética, mas acontece com a prosódia.
Acontece também com a música: podem-se registrar alterações do ritmo cardíaco e dos movimentos corporais de fetos em resposta à estimulação com segmentos de música erudita. Também é possível registrar a identificação de padrões sonoros regulares semelhantes à fala, logo após o nascimento.
Tudo isso indica que informações auditivas podem ser detectadas dentro do útero pelo feto, e que as inflexões da fala podem ser aprendidas no último trimestre da gestação. E mais: o bebê as utiliza logo ao nascer, no choro que produz quando fica zangado…
Agradeço a Sonia Costa pela proposição do tema.
Roberto Lent
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
B.S. Kisilevsky e colaboradores (2004) Maturation of fetal responses to music. Developmental Science, vol. 7: 550-559.B.
Mampe e colaboradores (2009) Newborns´ cry melody is shaped by their native language. Current Biology, vol. 19: pp.1-4.