Seu coração, sua personalidade

Nas artes, o coração é freqüentemente associado às emoções humanas, como no quadro acima –  Ela tinha um coração! (Anatomia do coração), pintado pelo espanhol Enrique Simonet y Lombardo (1863-1927).

Sabem por que os antigos egípcios retiravam o cérebro dos corpos que iam mumificar, mas mantinham o coração? Porque consideravam que estaria neste órgão quente, vermelho e pulsátil a nossa alma – razão e emoção – e não na massa fria, esbranquiçada e gelatinosa que compõe o cérebro.

Lentamente, ao longo da história, o cérebro foi adquirindo o status de sede das nossas mais complexas capacidades cognitivas e emocionais, e o coração – com todo respeito – se resumiu a uma bomba distribuidora de sangue aos órgãos e tecidos.

Mas a ciência nos surpreende diariamente, com suas descobertas e revoluções que às vezes viram de ponta-cabeça as idéias estabelecidas e consolidadas. Foi o que se deu com o estudo das emoções nas últimas décadas. Firmou-se a idéia de que a mente – baseada no cérebro – compõe um conjunto de funções inseparáveis e densamente articuladas com o restante do corpo.

O psicólogo americano William James (1842-1910) propôs, pioneiramente, que as emoções que sentimos diante de certos acontecimentos da vida são conseqüência das alterações corporais que eles provocam. Em outras palavras: não choramos porque ficamos tristes, ficamos tristes porque choramos. Parece estranho, não é? Apesar disso, a neurociência das emoções tem fornecido evidências experimentais de que esse estranho conceito pode ser verdadeiro.

O estreito vínculo entre a mente e o corpo, mais especificamente entre o cérebro e o coração, foi objeto de um estudo de grande relevância liderado por Stefan Koelsch, do Instituto Max Planck de Ciências Cerebrais e Cognitivas, na Alemanha. O grupo se propôs a analisar a personalidade emocional das pessoas e topou com a surpreendente revelação de que ela está “impressa” no coração.

Personalidade emocional

Traçado de eletrocardiograma representando em vermelho os segmentos medidos para calcular o índice E k .

Como você é? Emociona-se facilmente com uma música triste? Uma final de campeonato? A formatura de um filho ou irmão? Ou é do tipo mais controlado, que encara mais friamente esses eventos cotidianos? De um modo ou de outro, cada um tem a sua personalidade emocional, e sabemos todos que ela nos impõe mudanças corporais quando um desses eventos ocorre: lágrimas, taquicardia, tremor das mãos, respiração ofegante…

O que o grupo alemão encontrou em seus experimentos foi que o funcionamento normal de nosso coração, fora de qualquer evento extraordinário, reflete a nossa personalidade emocional. Para isso, eles criaram um indicador quantitativo da atividade cardíaca, medida por meio do eletrocardiograma, calculando um índice que chamaram E k , estimado a partir do tamanho das diferentes ondas do eletro.

Dentre um numeroso grupo de voluntários jovens, os E k variavam entre um mínimo de 0,04 e um máximo de 2,06 em condições normais, sem qualquer exposição a estímulos de ordem emocional. Os voluntários foram então separados em um grupo com os valores mais baixos de E k e outro com os valores mais altos. Ambos foram submetidos a questionários padronizados capazes de aferir o seu perfil emocional.

Uma assinatura cardíaca da personalidade
Alguns dias depois do registro do eletrocardiograma, voluntários de ambos os grupos foram submetidos a testes funcionais ao mesmo tempo em que ouviam trechos musicais agradáveis e desagradáveis retirados de obras de compositores contemporâneos e históricos. Os trechos desagradáveis eram obtidos manipulando eletronicamente os trechos agradáveis, de modo que as notas eram as mesmas, mas a sua seqüência era completamente diferente – e estranhamente dissonante…

A animação mostra um coração humano batendo, visualizado em um corte do tórax por meio de técnicas radiológicas especiais (imagem: G. D. Clarke).

Os testes realizados durante a audição musical foram exames de ressonância magnética funcional, que revelavam o envolvimento das áreas cerebrais que processam emoções, e o registro da freqüência cardíaca e suas variações. Durante o intervalo dos testes, os voluntários davam uma nota para cada trecho ouvido, segundo o grau de prazer (ou desprazer) que sentiram. Para aferir se estavam prestando atenção, deviam tamborilar com os dedos o ritmo da música.

O experimento indicou ativação das áreas cerebrais sabidamente envolvidas com as emoções, como era de esperar. Mas o mais interessante é que a intensidade da ativação cerebral foi maior nos indivíduos com maior E k , e menor no caso contrário. Da mesma forma, os primeiros apresentavam maior variabilidade da freqüência cardíaca, e os segundos uma freqüência mais estável. Além de tudo, o E k dos voluntários correlacionava-se com o seu perfil emocional aferido pelos questionários.

O resultado não deixou dúvida: o grupo de voluntários com E k mais baixo era composto pelas pessoas menos emotivas, isto é, com a personalidade emocional mais estável, menos influenciável pelos eventos externos. O contrário ocorreu para as pessoas com E k mais alto – aquelas que se emocionam facilmente com qualquer coisa.

A conclusão é forte: teríamos todos nós uma “assinatura cardíaca” de personalidade. Nosso coração, nossa emoção. Assim, a forma como nosso coração funciona em situações normais por si só representaria um marcador capaz de predizer nossos traços emocionais. Parece que os poetas sabem o que dizem, como o alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843): “Se tens razão e coração, mostra somente um deles, pois ambos te condenariam se os mostrasses juntos”.

SUGESTÕES PARA LEITURA
Koelsch, S. e colaboradores (2006) Investigating emotion with music: an fMRI study. Human Brain Mapping, vol. 27: pp. 329-350.
Koelsch, S. e colaboradores (2007) A cardiac signal of emotionality. European Journal of Neuroscience, vol. 26: pp. 3328-3338.
Oliveira, L. e colaboradores (2008) Processamento emocional no cérebro humano. Cap. 12 de Neurociência do Cérebro e do Comportamento (R. Lent, coord.), pp.253-269, Guanabara-Koogan: Rio de Janeiro.

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
27/06/2008