Silepse

A figura é conhecida. Na escola, aprendemos que ela se aplica a construções como ‘os brasileiros somos’, que merece uma avaliação positiva e mesmo uma interpretação que a distingue de ‘os brasileiros são’ (quem fala se inclui no conjunto dos brasileiros).

Em seu Dicionário de filologia e gramática, o linguista Joaquim Mattoso Câmara Jr. (1904-1970) informa que a silepse é uma construção ad sensum, ou seja, baseada no sentido, o que quer dizer que não é baseada na forma.

Um dos exemplos do dicionário é

“Destarte a gente força e esforça Nuno / que com lhe ouvir as últimas razões/ removem o temor frio e importuno” (a gente … removem).

A distância entre as expressões pode ser um fator condicionante.

Mas também são casos de silepse ‘a gente fomos / o pessoal gostaram’, em geral objeto de riso. Em ‘a gente fomos’, ‘fomos’ concorda com o sentido de ‘a gente’, que é ‘nós’. No fundo, a avaliação leva em conta mais a autoridade de quem fala ou escreve do que a construção sintática.

É como se Camões pudesse empregar a construção, mas um popular, não. Supõe-se que Camões escolheu essa forma conscientemente e que um popular não conhece outra. O que seria considerar que todos os usos são conscientes, que não é a língua (qualquer de suas variedades) que se impõe aos falantes, como pensam alguns filósofos, linguistas e psicanalistas.

É como se Camões pudesse empregar a construção, mas um popular, não

Em um texto sofisticado sobre tipos de anáfora publicado em livro que trata de fala e de escrita [Preti, D. (org.). Fala e escrita em questão. São Paulo: Humanitas], o linguista Luiz Antonio Marcuschi analisa diversos casos de anáfora que podem ser considerados silepses.

Anáfora, vale lembrar, designa elementos que funcionam para retomar o que já foi dito, numa oração ou num texto. As mais óbvias são do tipo ‘O rei tinha uma filha. Ela queria viajar’ (‘ela’ retoma ‘uma filha’); e ‘O rei tinha uma filha. A princesa queria sair pelo mundo’ (‘a princesa’ retoma ‘uma filha’). Uma das diferenças é que o segundo exemplo exige que se ‘saiba’ que filhas de reis são princesas, enquanto que ‘ela’ exige basicamente compatibilidade de gênero e número.

Marcuschi sustenta, entre outras coisas, que construções do tipo ‘A equipe médica continua analisando o câncer do governador Mário Covas. Segundo eles, o paciente não corre risco de vida’ são tipicamente orais (refere-se ao fato de que ‘eles’ retoma ‘equipe médica’, e não ao fato de que ‘o paciente’ retoma ‘o governador Mário Covas’).

O linguista analisa mais minuciosamente um conjunto de construções. Em diversos casos, elementos da cultura (ou da ideologia) devem ser considerados para explicar e para aceitar ou não determinadas construções. Por exemplo, diz ele, em

‘Às 4h00 da madrugada, a polícia invadiu o bordel e elas saíram correndo porta afora.’

não haveria dificuldade em associar ‘elas’ a ‘prostitutas’, o que, embora pareça um caso simples, é bastante complexo, porque implica associar ‘bordel’ sistematicamente a ‘prostitutas’ (uma metonímia) e a supor que ‘elas’ retoma essa palavra, que nem é mencionada.

Considera também que a construção

‘A equipe médica continua analisando o câncer do governador Mário Covas. Segundo elas, o paciente não corre risco de vida.’

não teria interpretação plausível. Pode-se discutir a tese, mas, de fato, a construção só seria possível, isto é, teria sentido, num mundo em que só houvesse médicas ou no qual o feminino fosse não marcado.

Ocorre que, em português, pelo menos, é o dito masculino que é não marcado: ‘médicos cubanos’ pode referir-se a médicos e a médicas, mas ‘médicas cubanas’ só se refere a médicas. Tanto um programa como o ‘Mais médicos’ não exclui mulheres que nem mesmo as mais arraigadas feministas encrencaram com tal designação.

Mais exemplos

Considerem-se outros dados, que propõem a seguinte questão: tais construções teriam passado da fala para a escrita?

a)    Em nove de cada dez sinopses de filmes que passam na TV, podemos ler coisas como ‘Um casal viaja em férias. Na praia, são atacados por um estranho’ (um casal -> eles). ‘Uma dupla de detetives descobre que X é traficante. Ele passa a persegui-los por toda a parte’ (uma dupla -> -los). No segundo caso, a construção é facilitada pela presença de ‘detetives’; de qualquer forma, esqueceu-se de ‘dupla’, núcleo do sujeito.

b)    O número 97 da revista Língua Portuguesa (nas bancas) cita Baltasar Gracián (claro, em tradução): “A maioria não tem apreço pelo que entende, e o que não compreendem, veneram”. Os dois verbos mais próximos de ‘a maioria’ estão no singular, mas os dois mais distantes estão no plural. Pode-se propor que antes desses verbos haja uma elipse, e que ela, se recuperada, estaria mais para ‘eles’ do que para ‘a maioria’. O fato é que não há nada antes dos verbos, e nada impede que a anáfora fosse ‘ela’, isto é, que se retomasse ‘a maioria’.

Se essas construções aparecessem em redações do Enem, elas seriam julgadas com base em uma gramatiquinha simplificada ou nas gramáticas que se baseiam na escrita das pessoas cultas?

c)    Luiz Felipe Pondé escreveu (em sua coluna semanal na Folha de S. Paulo): “O [bando] mais fraco perde. Depois, acuados, comem ervas embaixo de uma pedra, atormentados por predadores à noite. Um deles (…) descobre que (…) consegue ficar mais forte. Matam um animal grande e se “tornamcarnívoros”. Observe-se a flutuação entre concordância no singular e no plural. O mais relevante, aqui, são dados como ‘acuados / comem / atormentados’, relacionados a ‘bando’; e ‘matam / tornam / carnívoros’, a ‘um deles’ (= um dos dois bandos).

Que juízo emitiríamos sobre essas construções, se elas aparecessem em redações do Enem? Elas seriam julgadas com base em uma gramatiquinha simplificada, como a dos manuais de redação, ou com fundamento nas gramáticas que se baseiam na escrita das pessoas cultas?

Se a escolha for pela segunda alternativa, incluiríamos entre as pessoas cultas o jornalista que retomou ‘equipe médica’ com ‘eles’ e o filósofo Luiz Felipe Pondé?

Seria enorme injustiça aplicar aos estudantes, adaptado, um conhecido ditado: “Para os amigos, tudo; para os alunos, a lei”. Ou pior: a lei, segundo rasas interpretações.

Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas