O mundo está vivendo extremos climáticos simultâneos, com ondas de frio polar na América do Norte e recordes de calor na América do Sul e Austrália. No Brasil, em uma ponta do país e da escala hídrica, Rondônia e Acre sofrem com as cheias do rio Madeira, as maiores desde o recorde anterior, de 1997. Na outra ponta da escala hídrica, o Nordeste segue sofrendo uma longa e dura estiagem. Fechando o triângulo, o Sul e o Sudeste sofrem com um calor senegalês, falta de chuvas e umidade mais baixa do que normalmente se registra no período seco, o inverno.
Altas autoridades da nação sobrevoaram áreas inundadas em Rondônia e culparam as chuvas na Bolívia pela catástrofe. Sim, a consulta ao mapa confirma: as águas que nos inundam vêm da Bolívia, que alagou primeiro, por força de uma lei impiedosa, a da gravidade. O que é abismal, na era da comunicação instantânea, é que uma das dez maiores economias do mundo se deixe surpreender por algo tão previsível: chuvas pesadas a montante provocam inundações a jusante.
Já no Sudeste, estamos ainda em um dos verões mais quentes, áridos e hostis de que se tem notícia. Passamos pelo menos dois meses com mínimas superiores a 28,5 ºC e com um par de chuvinhas tímidas. De quebra, o índice de radiação ultravioleta bateu no topo da escala semanas a fio e o Atlântico sul inteiro tinha águas a 30 ºC, com florações de algas que transformaram o mar em uma sopa e formaram uma mancha escura com mais de 800 km de diâmetro, bem visível para quem estava na praia e mais ainda para quem estivesse em órbita, enquanto o Brasil inteiro aparecia na previsão do tempo como uma mancha homogênea de cor tijolo, isto é, muito quente, dia após dia. Assustador.
Somem-se a isso míni e mesoapagões, bairros inteiros sem água nem explicação por dias e dias, piranhas enlouquecidas atacando banhistas no rio Paraná e reservatórios baixando cada vez mais, quando deveriam estar subindo. Ei, é verão, época de chuvas! Pois é, o verão acabou e entramos no longo período de seca com a maioria dos reservatórios em níveis críticos ou apopléticos e usinas térmicas a mil. A energia das térmicas é mais cara e gera mais carbono fóssil, que vai gerar mais caos climático, que vai custar mais caro ainda.
Ironicamente, cidades como São Paulo são castigadas por chuvas torrenciais e avalanches de raios, frutos dos efeitos da própria cidade sobre o clima local. São chuvas que causam alagamentos, deslizamentos e mais engarrafamentos, mas não contribuem para geração de energia nem abastecimento de água. Até poderiam ajudar nisso, se a cidade tivesse sido pensada assim, mas não foi; nem São Paulo nem nenhuma outra. Ela continua dependendo de reservatórios na divisa com Minas Gerais, onde a chuva insiste em não cair.
As ameaças de racionamento e encarecimento de água e energia (não se empolgue, não são só ameaças) eram tão previsíveis quanto as cheias do Madeira após os aguaceiros rio acima. O quadro atual parece saído dos capítulos dos últimos relatórios do IPPC dedicados a previsões sobre mudanças climáticas globais no Brasil e países vizinhos e seus impactos socioeconômicos.
Senão vejamos: o IPCC previu secas e cheias históricas na região amazônica (bingo, já é fato!), longas secas no Nordeste (bingo de novo!), chuvas intensas na região Sul e tímidas no resto do país, com evidentes impactos negativos na agricultura, pecuária e geração de hidroeletricidade e, portanto, na economia como um todo (ok, bingo!). Mas não se anime, pois o IPCC vive fazendo previsões otimistas demais.
Miopia
Em todo o mundo civilizado se discutem as inúmeras adaptações necessárias para fazer frente a um cenário climático em acelerada deterioração. São discussões essenciais, mas tímidas e laboriosas, pois é difícil convencer um político a bancar um gasto tão líquido e certo quanto impopular, para evitar um prejuízo futuro bem maior, mas percebido como não tão líquido ou certo. Curiosamente, essa miopia se acentua em anos de eleição. Nosso ministro das Minas e Energia disse textualmente: “Não enxergamos risco de racionamento”. Note que ele foi claro. Não disse “Não há”, mas “Não enxergamos”. Está coberto de razão.
Mas há a miopia durável, contumaz, reincidente, a que resiste às evidências. Sabemos, graças a exaustivas e sofisticadas medidas de campo, que a chuva no Sudeste do país depende da umidade que os ventos sopram da Amazônia para o sul. Mais desmatamento ali, menos retenção de água, menos evapotranspiração e, consequentemente, menos chuva no Sul e Sudeste, onde se concentra a maior fatia do nosso PIB. A falta de chuva vai encarecer sua conta de luz, mas só depois das eleições. O socorro oferecido às distribuidoras de energia pelo governo esta semana é de cerca de R$ 15 bilhões e visa compensar o custo bem maior da geração térmica. É só o começo; muitos setores precisarão de socorro.
Mas cabe perguntar: no médio e, talvez, no curto prazo, com que recursos pagaremos se não houver produção e, portanto, arrecadação, por falta de água, energia, produção agrícola e industrial, e pela consequente sobra de entropia social? Por quanto tempo podemos suportar uma tempestade perfeita que combine escassez de água, energia e alimentos?
Se fôssemos razoáveis, há tempos estaríamos replantando obsessivamente o país e o planeta, cobrando pela gasolina e pela água seu preço real – e não subsidiando-as pesadamente –, investindo em diversificação da matriz energética, em eficiência, em transporte de massa climatizado e com wi-fi, em qualidade mais que em quantidade, em sustentabilidade mais que em crescimento capenga.
Mas preferimos ignorar os avisos e manter o rumo de estímulo ao consumo nos moldes dos dois últimos séculos, sem saneamento nem política decente de resíduos sólidos, com pesados subsídios ao automóvel e ao petróleo, aos eletrodomésticos, planos de explorar gás de xisto sem avaliação de risco que se preze e sem nenhuma campanha pra valer de racionalização do consumo de água e energia.
A universidade e o canal do Cunha
Darei exemplos concretos de descaso com o consumo de energia no Brasil. Começo pela universidade onde trabalho. Ali não há medidores de consumo de luz e água nos institutos, centros e núcleos que a compõem. Só sabemos o consumo total, sempre maior que o orçamento, e não sua distribuição interna. Os prédios, em sua maioria construídos entre 1950 e 1970, têm telhados de amianto, cinza escuro, eficientes coletores de calor. Entre o telhado e a laje de salas e corredores há um espaço de menos de 1 m de altura, em que as temperaturas atingem 80 ºC no verão.
Sob essas lajes, trabalha e transpira a nata do ensino e da pesquisa em ciências exatas e inexatas, humanas e desumanas, gastando rios de energia em climatização. Pensou-se em pintar o telhado de branco e ventilar o vão sob o mesmo? A hipotética proposta talvez não passe em uma reunião do Conselho, pois terá custo certo para os gestores atuais e beneficiará os do futuro, e de quebra é difícil estimar quanto. Trocar universidade por ministério, empresa, condomínio ou país não muda grande coisa; os mecanismos são os mesmos e, na falta de entendimento sobre a partilha de ônus e bônus, ficará tudo como está, garantindo ônus futuros para todos.
Ok, hora de ir para casa. No engarrafamento da via que deveria ser expressa, passo sobre o canal do Cunha, um dos maiores afluentes da baía de Guanabara, que vai sediar competições náuticas nas Olimpíadas. Uma barreira flutuante foi instalada na foz do rio há poucos anos para recolher o lixo também flutuante. Há mais de um ano a ecobarreira afundou, deixando o lixo fluir para a baía, onde ecolanchas tentam recolher o material já disperso.
Enquanto especulava se a instalação das barreiras e a operação das lanchas estariam a cargo das mesmas empresas ou instituições, o trânsito andou e acabei chegando à farmácia e ao supermercado. Na rua, o calor é espantoso, até que se chegue diante de edifícios comerciais. Disse ‘diante’, não ‘dentro’. As portas escancaradas vomitam na tórrida calçada ar fresco produzido por poderosos condicionadores tipo split. Para que as moças do caixa não derretam, ventiladores estão apontados diretamente para elas. É como querer tomar banho de banheira sem tapar o ralo. O padrão se repete em comércios e repartições de todo tipo e tamanho, aeroportos, shoppings etc. A energia deve mesmo estar barata, já que, com medidor ou sem, quase ninguém se preocupa com o consumo, nem percebe o desperdício.
Um futuro sombrio
Cabe perguntar: estaríamos tão despreocupados assim se nossos recursos fossem mais escassos? O crescimento sempre vale a pena, mesmo quando é torto e fugaz? Quem vai pensar e executar um plano de verdade para adaptar o país às mudanças climáticas? Um consórcio de empreiteiras, contratado em regime emergencial?
Com tão pouca governança, em todos os níveis e latitudes, vão sobrar emergências de verdade. James Lovelock, cientista que dispensa apresentações, faz previsões sombrias para o nosso futuro coletivo e se declara convencido de que já é tarde demais para se mudar de rumo. Com o típico humor inglês, diz: “Será uma época sombria. Mas, para quem sobreviver, desconfio que vá ser bem emocionante.” Recomendo a leitura integral da entrevista.
Lovelock não está só. Um grupo de cientistas sociais e biólogos realizou um estudo, financiado pela Nasa, que chega a conclusões semelhantes, analisando fatores que levaram sofisticados impérios do passado ao colapso.
A vida é mesmo injusta. Em todos os cenários, as elites, principais responsáveis pela superexploração dos recursos naturais e principais obstáculos a mudanças de padrão de consumo, são o último grupo a desaparecer.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro