Saiu outro dia no jornal norte-americano The Washington Post: pai de uma estudante negra do 5º ano da região de Detroit, nos Estados Unidos, está processando a escola onde a menina estuda por considerar que ela foi racialmente assediada.
Motivo: o professor teria lido em voz alta trechos de um livro infantil sobre escravidão, durante uma aula em que os alunos preparavam-se para celebrar o Black History Month (mês da celebração da história e cultura negra, comemorado tradicionalmente em fevereiro naquele país).
Segundo o advogado da escola, os alunos estavam envolvidos em uma discussão positiva sobre o livro. Mas, no processo, os pais reclamam que a leitura, recheada com termos supostamente considerados racistas, teria prejudicado o aprendizado da filha, afetada em seu bem-estar mental e emocional.
O livro em questão, From Slave Ship to Freedom Road (Do navio negreiro à estrada da liberdade, em tradução livre), foi escrito pelo celebrado autor negro Julius Lester, autor do best-seller infantil To be a slave (Ser um escravo, em tradução livre) e professor de estudos afro-americanos da Universidade de Massachusetts.
Trata-se de uma narrativa sobre a escravidão do ponto de vista de um escravo. A obra é baseada em uma série de pinturas sobre o tema feitas por Rod Brown, artista cujo trabalho já foi exposto no Schomburg Center for Research in Black Culture, de Nova Iorque, e no Frederick Douglass Museum, de Washington DC.
A princípio, por suas biografias, jamais os dois seriam suspeitos de propagar conteúdo racista em suas obras. No entanto, é isso o que o processo pretende provar.
Caso brasileiro
Isso aconteceu na mesma semana em que jornais de todo o Brasil noticiaram o parecer do Conselho Nacional de Educação no qual o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, um dos maiores clássicos da literatura infantil do Brasil, foi considerado inadequado para uso em sala de aula, por ter conteúdo racista.
A primeira edição de Caçadas de Pedrinho é de 1933. Monteiro Lobato costumava dizer que “um país se faz com homens e livros”, não era negro nem professor, mas criou o Sítio do Picapau Amarelo.
A semelhança entre os dois casos não pode ser mera coincidência. Tanto aqui quanto nos Estados Unidos, a discussão sobre como falar de “raça” e racismo nas escolas está na ordem do dia. E provoca reações apaixonadas. O próprio ministro da Educação se manifestou contra o veto a Caçadas de Pedrinho e favorável a uma explicação, em nota, sobre o conteúdo racista de passagens do livro.
Marisa Lajolo, professora titular da Universidade Estadual de Campinas e especialista em Monteiro Lobato, acha que nem nota explicativa o livro deve ter: “O que a nota exigida deve explicar? O que significa esclarecer o leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura? A quem deve a editora encomendar a nota explicativa? Qual seria o conteúdo da nota solicitada? A nota deve fazer uma autocrítica (autoral, editorial?), assumindo que o livro contém estereótipos? A nota deve informar ao leitor que Caçadas de Pedrinho é um livro racista? Quem decidirá se a nota explicativa cumpre efetivamente o esclarecimento exigido pelo MEC?”
Repúdio inicial
Minha primeira sensação, ao tomar conhecimento dos dois casos, também é de repúdio. Os dois episódios parecem ser excessos de um tempo em que tudo parece poder ser rotulado como racismo.
Compartilho do desconforto de muitos com o uso indiscriminado da palavra “raça”, como, aliás, tão bem definiu Monica Grin em seu livro “Raça”: debate público no Brasil (Rio de Janeiro, Mauad/Faperj, 2010), também lançado na semana passada. Ela advoga o uso do termo entre aspas, para não correr o risco de ser confundido com o uso naturalizado daqueles que acreditam que, de fato, existem entre nós, humanos, mais de uma raça. Nunca se sabe.
Mas em um debate onde tantos têm tantas certezas, eu continuo cheia de dúvidas.
É indiscutível que Monteiro Lobato é o autor maior da literatura infantil brasileira. Sou, como todo mundo, apaixonada por seus livros. Leio-os para minhas filhas, e não acho que isso fará delas pessoas racistas. Não acho que eles devam ser banidos das escolas, e não saberia responder a nenhuma das perguntas elencadas por Marisa Lajolo sobre as tais notas explicativas.
Mas, ao mesmo tempo, não posso deixar de compreender quem se incomoda em ouvir, em sala de aula, termos como “negra beiçuda”, como várias vezes foi chamada a Tia Nastácia. Atribuir o incômodo apenas a um excesso de sensibilidade de quem reclama talvez seja falta de sensibilidade de quem vê, nesse fenômeno, apenas o lado do autor e do texto.
Tem o leitor também. Ou melhor, os leitores. Que leem o texto de Lobato de infinitas maneiras, inclusive aquela em que não se gosta dos estereótipos. Desqualificar pura e simplesmente essa chave de leitura, acusando-a de simplista, é o mesmo que desqualificar esse leitor.
Manifestação das cores
O que esses casos da semana passada a mim sugerem – mesmo com seus excessos e exageros – é que, diferentemente do que acontecia há várias décadas, hoje temos alunos de todas as cores nas salas de aula do país. E – novidade também – são alunos que reclamam, e alto, quando se sentem incomodados.
Há quem veja nisso a expressão da racializaçāo da sociedade brasileira, como teria acontecido com a sociedade norte-americana. Há outros que advogam ser esse processo parte do amadurecimento do exercício da cidadania no Brasil.
Talvez até seja um pouco das duas coisas. Mais da segunda do que da primeira, espero. Seja como for, o que não dá mais para fazer, hoje em dia, é tampar o ouvido e fingir que não ouviu.
Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro