A mineração é, por natureza, atividade não sustentável. Vive da extração de minerais cujos estoques são finitos. Uma vez exauridos, a única opção será reciclar os metais já extraídos.
Na maior parte dos casos, busca-se extrair um elemento valioso que está presente no minério em teores de gramas por tonelada. Para chegar ao minério, é necessário remover quase tudo o que há no caminho e achar onde botar tudo isso. O lugar designado para tal é adequadamente chamado de bota-fora. É nele que se descartam montanhas de material processado, rebaixado agora ao termo ‘estéril’.
No caso da mineração de ouro, por exemplo, gera-se cerca de uma tonelada de estéril para se obter três gramas do precioso metal. Dependendo de seu teor de água, o estéril é empilhado ou recolhido em bacias de decantação, cujos diques teimam em sofrer infiltração ou, pior, rompimento, geralmente em época de chuva.
Já as pilhas de estéril causam outro problema, a drenagem ácida. Os minérios são frequentemente ricos em enxofre, que forma sulfatos, combustível das bactérias sulfato-redutoras, cuja atividade incessante gera ácido sulfúrico. O chorume formado nessas pilhas de estéril pode ter acidez suficiente para matar dezenas de quilômetros da bacia de drenagem a jusante.
Falei em teor de água. Água de onde e para quê? Água de onde houver, em quantidade, para processar o minério moído, que se torna, assim, uma polpa, que pode ser bombeada, agitada e misturada homogeneamente com reagentes diversos. O fato de certas frações da polpa serem mais leves ou hidrofóbicas permite também removê-las por flotação, um processo parecido ao que se faz na cozinha com uma escumadeira.
Caramba, ainda não extraímos quase nada e já ocupamos uma área enorme com material inservível para agricultura e geralmente inadequado para construção, e transformamos rios de água em rios de lama. E, por enquanto, falamos mais da física do que da química e da toxicologia do processo.
Amalgamação e cianetação
Seguindo com nosso exemplo do ouro: há vários processos para sua extração, mas os mais usados são a amalgamação com mercúrio metálico e a cianetação. O mercúrio é um elemento muito peculiar, líquido e pouco volátil à temperatura ambiente, condutor, e capaz de dissolver outros metais.
Entre muitos outros usos, essas propriedades permitem fazer obturações dentárias baratas e duráveis – misturando-se mercúrio, prata e cobre – e também extrair ouro fino de solos e sedimentos. Depois de amalgamado com o ouro e a prata ali contidos, o mercúrio é removido por aquecimento.
Naturalmente, isto pode gerar grave exposição ocupacional e injeta vapor de mercúrio na atmosfera, que pode se dispersar por grandes distâncias. Também gera quantidade expressiva de material contaminado com mercúrio metálico. Embora simples e barato, esse processo não consegue remover mais de 30% do ouro.
Para aumentar o rendimento da extração, seus efluentes são frequentemente submetidos à cianetação. O cianeto é bem menos conversável do que o mercúrio. Pequenas bobeiras no seu uso podem gerar vapores fatais, e sua liberação em corpos d’água transforma-os em desertos por dezenas de quilômetros. Sua toxicologia é, digamos, mais rápida e objetiva.
De draga em draga
Mas foi o processo de amalgamação que sustentou a corrida do ouro na Amazônia brasileira durante os anos 1980. Concentrada nos rios Madeira e Tapajós, essa corrida produziu cerca de 100 toneladas anuais de ouro e a liberação de quantidade equivalente de mercúrio em solos, águas e atmosfera, além de causar assoreamento de rios e modesto desmatamento.
Durante uma década, o garimpo de ouro ocupou um milhão de garimpeiros, gastou mais carpete do que a construção civil e foi o principal consumidor de motores diesel e de popa do país.
No rio Madeira, grandes dragas e balsas foram improvisadas com flutuadores de todo tipo, dos barris de óleo amarrados uns aos outros aos grandes cilindros metálicos encomendados em pequenas metalúrgicas. Cobertos com piso de madeira e lona, abrigavam equipes de quatro a seis pessoas, que trabalhavam, comiam e dormiam a bordo e se deslocavam ao sabor do teor de ouro no sedimento do rio.
Em pontos mais atraentes, as dragas e balsas se acotovelavam tornando quase possível a travessia do rio sem molhar os pés, pulando de draga em draga. Armazéns, bordéis, restaurantes, postos de venda de gasolina, diesel e mercúrio eram flutuantes e tão móveis quanto os seus clientes.
Já no Tapajós e em Serra Pelada, o garimpo era de terra firme e deixava marcas mais visíveis, como as grandes cavas empapadas de água. Por que esse cenário épico não foi tema de algum filme à la Fitzcarraldo, de Werner Herzog, é uma pergunta que não quer calar.
Em plena crise inflacionária oficial, essa economia paralela, porém muito concreta, era regida pelo ouro e os estabelecimentos não tinham caixa registradora, mas sim balanças de precisão. Uma cerveja ou maço de cigarro, 1 grama de ouro. Um programa, 2 gramas, e assim por diante.
Tudo isso era ilegal, já que ninguém tinha autorização de lavra, só de prospecção, e o uso de mercúrio no garimpo não era autorizado. Mas com 100 toneladas anuais de ouro, quem vai se importar, não é mesmo? E as 100 toneladas anuais de mercúrio? Eram importadas, já que não temos jazidas desse metal multiuso no Brasil. Importadas para “uso odontológico” ou “usos não especificados”. Haja obturação, mas ninguém estranhou.
O garimpo voltou
Mas aí a queda brusca do preço do ouro fez ‘tcham’, o plano Collor fez ‘tchum’ e a partir de 1990 a atividade garimpeira desabou, assim como a visibilidade do tema. Mas nada é para sempre, a não ser a morte e a extinção. Os preços do ouro vêm subindo forte nos últimos anos. O garimpo voltou. Não à ribalta, mas às ribeiras.
Todo mês alguma draga é abalroada no Madeira por um barco de passageiros ou uma balsa de transporte. Não tem onde reclamar, afinal, não deveriam estar ali. Mas no garimpo há trabalho, come-se carne e pode-se sonhar com riqueza num pais ainda campeão de desigualdade.
E assim, com a subida da cotação do ouro, o estéril de ontem virou matéria-prima. No Tapajós, o material desprezado pelos garimpeiros de 20 e poucos anos atrás é agora retrabalhado com cianetação. Sem alarde midiático nem documentário da BBC.
No Madeira, grandes hidrelétricas estão em construção no trecho que sofreu garimpo nos anos 1980 e só no futuro saberemos que efeito isso terá sobre os níveis de mercúrio em peixes, nas próprias represas e rio abaixo.
No Peru, a região de Madre de Dios é cenário de uma corrida do ouro localizada, mas muito intensa, em áreas cuja drenagem flui para o nosso pais. E todas as áreas auríferas estão em exploração crescente, no mundo todo, e novos projetos se multiplicam.
No Brasil, o governo do estado do Amazonas deu sua contribuição ao debate autorizando o uso de mercúrio nos garimpos do estado, quando muitos visitantes da Rio+20 não haviam ainda feito as malas. Só saiu em versões on-line de alguns jornais.
Mas não se preocupe, será exigido um relatório de impacto ambiental. Difícil vai ser o preenchimento do quadro “local da atividade”. Afinal, não há espaço suficiente no formulário para escrever “onde houver ouro, num trecho de 900 quilômetros do rio Madeira, a partir da divisa do estado, e em afluentes no mesmo trecho”. E tudo isso só faz algum sentido, se fizer algum, caso haja alguma presença do estado nos locais em questão.
Algo me diz que não vai ser o caso. Vamos acabar sendo abalroados por um documentário da BBC ou algo parecido. Mas com tanto ouro, quem se importa, não é mesmo?
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro