Voltei há pouco de duas semanas de trabalho de campo no sul do Equador, na província de El Oro, ao longo da bacia do rio Puyango, que após cerca de 150 km em território equatoriano torna-se rio Tumbes, no Peru, desaguando no Pacífico.
Na visita anterior, em 2009, estudei com parceiros equatorianos – Oscar Betancourt e Edwin Cuevas – o impacto da atividade de mineração de ouro e prata sobre o trecho equatoriano da bacia do rio Puyango.
Concentradas ao redor das vilas de Zaruma e Portovelo, cerca de 110 empresas de pequeno e médio porte processam milhões de toneladas anuais de minério de procedência local, regional e até internacional – do Peru e da Colômbia – para extração de ouro e prata.
Toda a região é salpicada de minas, das menores e mais arriscadas, cavadas a picareta, até as mecanizadas, com trilhos, elevadores e engenheiro responsável.
A mineração é importante na região desde o tempo dos incas. Na época, o ouro só tinha valor simbólico, associado ao sol e a seus poderes. A prata idem, associada à lua. Hoje é commodity e investimento de refúgio em tempos sombrios da economia de papel.
O preço do ouro triplicou nos últimos cinco anos. Previsivelmente, esse aumento da cotação levou a um crescimento da mineração de ouro em todas as regiões auríferas do globo e não havia por que ser diferente no Equador.
Montanhas de rejeito
Durante minhas idas e vindas pelas estradinhas da região, coletando amostras em pontos com diferentes graus de impacto da mineração, encontrei dezenas de mineradoras e processadoras novinhas em folha, penduradas em encostas audaciosas ou coladas ao morro numa curva de rio com um cantinho mais ou menos plano.
A região é montanhosa. Achar onde construir e fazê-lo com alguma segurança é um desafio. Achar onde colocar as toneladas de material estéril é outro problema nada trivial. Há o minério sem valor que se remove para chegar ao veio de ouro e há o minério já processado que não contém mais ouro em quantidade que justifique nova extração.
Mas o estéril de hoje pode ser o lucro de amanhã, se o preço do ouro subir mais ou se surgirem novos processos, mais eficientes. As toneladas de material estéril passam, assim, de estorvo a motivo de cobiça, objeto de calorosas negociações de troca, de acordo com seus teores de ouro, prata, cádmio, chumbo, zinco, cobre, manganês, titânio, nióbio, vanádio.
Pois é, a mineração é de ouro e prata, nessa ordem, mas o minério explorado para isso também contém todos os outros metais citados e em proporções variáveis, segundo a procedência, o que faz variar o seu preço no mercado.
Fica claro que, nesse contexto, quem detém o conhecimento é rei. Coexistem as pequenas empresas com um dono intuitivo e fanfarrão e aquelas com sofisticados minilaboratórios de química analítica.
A essa diversidade fascinante no cenário tecnológico contrapõe-se a ausência de biodiversidade na bacia do Puyango por longos 115 km a jusante da área onde se concentram mineradoras e processadoras. Elevadíssimas turbidez e concentração de cianeto de sódio, mercúrio, chumbo, manganês, arsênico, cádmio, zinco, ferro, alumínio e mais um terço da tabela periódica prevalecem nesse trecho.
Síntese da situação: áreas montanhosas, esburacadas e perfuradas há décadas pela mineração, desmatadas também há anos por uma pecuária de baixo rendimento, e, secundariamente, por uma agricultura de subsistência. E tudo e todos dependendo da água dos mesmos modestos rios e córregos: isto não pode dar certo por muito tempo.
As vazões cada vez menores, os picos de cheias cada vez mais violentos. Há deslizamentos, desmoronamentos. Tudo isso em rios assoreados por montanhas de rejeitos. Talvez não seja uma boa ideia investir em imóveis na região.
De arregalar os olhos
E na planície costeira semiárida, onde corre o trecho peruano do agora chamado rio Tumbes, o que encontramos? Arrá! Em vez de um rio morto, um rio… moribundo. Ali, a 25 km da costa em linha reta, as gaivotas vêm pescar, sem esforço nem mérito, alevinos asfixiados pelo cianeto, que sobem inútil e fatalmente à superfície. Para mim foi tão estranho quanto ver um pelicano em Ouro Preto, MG. E não me peçam outros exemplos.
A 10 km rio abaixo, a preciosa água do rio Tumbes é sugada à razão de seis metros cúbicos por segundo para irrigar milhares de hectares de culturas agrícolas. Mais adiante, é coletada e (bem) tratada para abastecimento público das cidades costeiras. Sobra pouca coisa quando o rio se aproxima do mar, formando um tímido estuário.
Os mais velhos do lugar dizem que até uns 30, 40 anos atrás, o rio era forte e tinha uma barra fixa. Hoje, o que dele extravasa por uma barra peregrina que sofre bullying contínuo do mar é um filete poluído pelo esgoto não-tratado (oh! Que surpresa!) da cidade de Tumbes e pelas descargas de efluentes das enormes fazendas de camarão que se estabeleceram na várzea do rio, às custas do belo manguezal que vicejava ali.
As camaroeiras à beira-mar amargam prejuízos pela destruição das piscinas construídas junto às praias. Vai piorar, comentei com o engenheiro agrônomo que nos recebeu: o rio não entrega mais os sedimentos que entregava, ficam agora retidos nos solos irrigados, e o mar comerá outras piscinas, da sua empresa e das concorrentes. Acho que nunca um técnico me fitou tanto tempo, com olhos tão abertos.
Além da exoftalmia, há outros efeitos negativos da remoção do mangue. Se os camarões que compõem os ceviches peruanos e equatorianos (todos deliciosos) podem ser produzidos em fazendas intensivas, o mesmo não se aplica aos moluscos e caranguejos, ingredientes essenciais do mesmo prato. Esses só se sentem à vontade em manguezais de verdade, com maré e tudo.
Voltando aos solos agrícolas irrigados com a água do rio Tumbes, lotada de minerais e outras toxinas, oriundas da intensa experimentação mineroindustrial em curso na parte alta dessa fustigada bacia hidrográfica, o que encontramos? Arroz e banana. Ok, mas e seu conteúdo em metais tóxicos como mercúrio, chumbo, cádmio? Não há dados recentes, apenas um relatório de 2008, com valores de cádmio em arroz já bem acima dos limites permitidos para consumo impostos por normas nacionais e internacionais.
Não precisamos de dados recentes para apostar que os níveis atuais do metal no arroz produzido na costa norte-peruana e sul-equatoriana são maiores hoje do que em 2008.
É uma pena. Tanto o arroz como o ceviche são ótimos. E o ceviche misto é o meu preferido. Mas requer preservação de mais biodiversidade para continuar a surpreender meu paladar.
Já o ouro… o ouro? Serve para que mesmo?
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro