Sobre tomografia e o cérebro das aves

Que as aves são um grupo particular de dinossauros começa a deixar de ser novidade. Características consideradas no passado exclusivas desse grupo, como a fúrcula (popularmente identificada como o ‘osso da sorte’) e as penas, já foram reportadas em vários dinossauros não avianos. Até agora, a maioria dos pesquisadores defende que o cérebro proporcionalmente grande em relação à massa do animal seria uma das características únicas das aves, cujo desenvolvimento teria se iniciado em dinossauros diretamente relacionados a elas.

Dessa forma, a espécie extinta Archaeopteryx lithographica, que ocupa uma posição intermediária entre as aves modernas e os dinossauros proximamente relacionados, deveria apresentar um cérebro com proporção intermediária. No entanto, parece que a ‘história’ não é bem assim, como revelou o estudo de Amy Balanoff (American Museum of Natural History) e colegas que acaba de ser publicado na Nature.

O cérebro e os fósseis

Todos sabem da importância do cérebro. Trata-se de um órgão bastante complexo que é o centro do sistema nervoso. Na maior parte dos organismos (com raras exceções em que o sistema nervoso é descentralizado, como nas águas-vivas), o cérebro administra praticamente tudo, desde o modo de andar até a maneira de se alimentar. Assim, quanto mais informações podemos obter sobre esse órgão, melhores são as interpretações que podemos fazer sobre o modo de vida dos organismos, particularmente dos vertebrados, incluindo as formas extintas.

Quanto mais informações podemos obter sobre o cérebro, melhores são as interpretações que podemos fazer sobre o modo de vida dos organismos, particularmente dos vertebrados, incluindo as formas extintas

Já posso até imaginar a pergunta do leitor: mas, se o cérebro é composto por tecido mole, como podemos saber algum detalhe de sua estrutura em fósseis de vertebrados dos quais geralmente temos apenas as partes duras do esqueleto, como ossos e dentes? Compreensivelmente, não é uma tarefa fácil. No entanto, ao estudar o cérebro dos vertebrados recentes, pode-se observar a existência de algumas marcas impressas nos ossos que formam a caixa craniana. E essas marcas também são encontradas nos vertebrados extintos, o que pode fornecer uma ideia geral da estrutura desse órgão.

Outra dificuldade está vinculada à própria natureza do material de vertebrados fósseis, geralmente comprimido e compactado. Como conseguir recuperar a região interna da caixa craniana, onde se alojava o cérebro, para procurar as marcas deixadas por esse órgão nos ossos? É justamente esse o aspecto inovador da pesquisa realizada por Amy: a utilização de tomografia computadorizada para tentar recuperar essas impressões deixadas nos fósseis.

Sem esmiuçar por demais as questões técnicas, basicamente o fóssil é colocado em um tomógrafo, de preferência industrial, e uma série de imagens em corte são obtidas. Quanto menor a distância entre os cortes, melhor é a qualidade da imagem final. Cada corte é trabalhado manualmente, em um processo que separa o fóssil da matriz sedimentar, que é eliminada da imagem, deixando um espaço vazio. Em seguida, esses cortes são compilados, formando uma imagem tridimensional dos espaços vazios, que são destacados com cores diferentes, cada uma indicando uma parte anatômica.

Crânio de dinossauro e de ave
À esquerda, crânio do dinossauro oviraptossauro ‘Citipati osmolskae’ e, à direita, da ave recente ‘Melanerpes’ (gênero de pica-pau), com as diferentes regiões dos cérebros destacadas: bulbo olfativo (laranja), lobo óptico (rosa), cerebelo (azul), telencéfalo (verde) e tronco encefálico (amarelo). (imagens: Amy Balanoff, AMNH)

O ponto básico é reconhecer em cada corte o que faz parte do fóssil e o que, na realidade, seria a parte preenchida pelo tecido mole (no caso, o cérebro) e que hoje está ocupada pela rocha sedimentar onde o fóssil se preservou. Para a remoção digital dessa rocha tem que haver uma diferença significativa entre a densidade dela e a do material fossilizado. E existem casos em que essa diferença de densidade é muito pequena, tornando o procedimento menos preciso.

Resultados surpreendentes

Além de Archaeopteryx, Amy e seus colegas tomografaram aves e diversos dinossauros não avianos, destacando em cada um as seguintes partes do cérebro: bulbo olfativo, lobo óptico, cerebelo, telencéfalo e tronco encefálico. Com isso, eles puderam estabelecer a estrutura geral do cérebro e comparar cada uma das partes entre si, tanto em termos de forma quanto de volume. Por último, eles estabeleceram a massa do cérebro em relação à estimativa da massa do animal e dispuseram os dados em gráficos, no intuito de determinar quais estavam mais próximos das aves modernas.

Se o tamanho avantajado do cérebro em relação ao corpo fosse realmente uma característica exclusiva das aves, então o resultado esperado seria um aumento gradativo do cérebro a partir de Archaeopteryx e a existência de cérebros proporcionalmente menores em todos os dinossauros que não estivessem diretamente relacionados às aves modernas. No entanto, não foi isso o que eles verificaram.

Os resultados demonstraram que alguns dinossauros têm um cérebro proporcionalmente maior que o de Archaeopteryx. Esse é o caso de Zanabazar junior, um troodontídeo que, apesar de não estar mais proximamente relacionado às aves modernas quando comparado a Archaeopteryx, possui volume cerebral maior. Quando as partes do cérebro foram comparadas entre si, os pesquisadores puderam determinar que Archaeopteryx exibe um padrão mais próximo de dinossauros não avianos do que das aves.

Crânio de Zanabazar junior
O dinossauro deinonicossauro ‘Zanabazar junior’ (na foto) tinha volume cerebral proporcionalmente maior que o de Archaeopteryx, embora seja menos proximamente relacionado às aves modernas que este último, o que indica que o cérebro avantajado não é característica exclusiva da linhagem evolutiva das aves. (imagem: Amy Balanoff, AMNH)

Tais resultados levaram à conclusão de que a expansão cerebral tida como única e característica da linhagem evolutiva das aves ocorreu, na verdade, de forma independente em linhagens de dinossauros não avianos.

Outra consequência interessante desse estudo está relacionada à capacidade de voo. Se Archaeopteryx possuía uma boa capacidade de voar tendo o cérebro que tem, então nada impediria que outros dinossauros com um volume cerebral proporcionalmente ainda maior também a tivessem. Esse seria o caso de dromeossauros e troodontídeos, por exemplo. O fato de terem sido encontradas formas como Microraptor (do qual não foram realizadas tomografias), que não estão diretamente relacionadas à linha evolutiva das aves, mas teriam boa capacidade de voo, corrobora essa conclusão.

A evolução do cérebro de dinossauros não avianos e aves é mais complexa do que se supunha

Claro que esses resultados devem ser vistos como preliminares, já que ainda existe uma grande quantidade de espécies a serem analisadas. Porém, ficou claro que a evolução do cérebro de dinossauros não avianos e aves é mais complexa do que se supunha.

Como o leitor pode perceber, o estudo de Amy e colegas é mais uma evidência de que o estereótipo do paleontólogo sentado em seu escritório tirando poeira de ossos fossilizados é algo do passado. Hoje a paleontologia cada vez mais utiliza técnicas e instrumentos modernos e laboratórios sofisticados para procurar responder perguntas progressivamente mais complexas acerca dos organismos extintos. Coisa de ‘gente grande’…

Alexander Kellner
Museu Nacional/UFRJ
Academia Brasileira de Ciências

Paleocurtas

As últimas do mundo da paleontologia
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Ivan Sansom (University of Birmingham, Inglaterra) e colegas acabam de publicar a descrição de uma nova espécie de peixe encontrada em depósitos do Ordoviciano Superior, com cerca de 455 milhões de anos, na Austrália. O mais inusitado da descoberta de Ritchieichthys nibilis, que pertence a um grupo de peixes basais desprovidos de arcadas dentárias (Arandaspididae), foi o fato de o material (formado por parte da couraça dérmica) ter sido recuperado de um furo de sondagem realizado durante uma pesquisa de petróleo, a uma profundidade de mais de 3.860 metros. Essa rara ocorrência foi publicada no Journal of Vertebrate Paleontology.

O pesquisador russo Alexander Averianov (Russian Academy of Sciences) publicou uma reconstrução do pescoço de um dos principais pterossauros da Ásia. Azhdarcho lancicollis deu origem ao grupo chamado Azhdarchidae, que reúne alguns dos maiores répteis voadores conhecidos até o momento, caracterizados pelo grande alongamento de suas vértebras cervicais. Com ajuda de reconstruções feitas em computador tendo por base elementos isolados coletados ao longo dos anos no Uzbequistão, Averianov sugere que esses répteis alados teriam se alimentado de forma semelhante à dos pelicanos. A pesquisa foi publicada no Paleontological Journal.

Um dos conjuntos de organismos fossilizados mais famosos e que têm ganhado as páginas científicas das principais revistas do mundo é a biota de Jehol, na China. No entanto, existe uma grande discrepância na definição do que essa biota representa – alguns defendem que ela inclua áreas de outros países, como da Coreia do Norte. Yanhong Pan (Nanjing Institute of Geology and Palaeontology, Nanjing, China) e colegas acabaram de publicar na Cretaceous Research uma revisão do termo, com novas definições, restringindo a biota de Jehol a algumas camadas.

O primeiro crocodilomorfo de depósitos jurássicos do Brasil acaba de ser apresentado na Naturwissenschaften. Denominada de Batrachomimus pastosbonensis por Felipe Montefeltro (Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto) e colegas, a espécie é baseada em um crânio quase completo associado a ossos isolados e está proximamente relacionada a espécies encontradas na Ásia. Batrachomimus possui várias feições presentes em formas modernas e contribui para um melhor entendimento da evolução dos crocodilomorfos.

Uma das formas mais enigmáticas da famosa fauna de Ediacara é Shaanxilithes ningqiangensis, que já foi interpretada como sendo uma marca deixada por algum organismo, uma forma de alga ou um metazoário de classificação incerta. Com base em novos exemplares coletados em rochas com idade aproximada de 542 milhões de anos na Índia, Lidya Tarhan (University of California, Estados Unidos) e colegas chegaram à conclusão de que se trata de uma estrutura orgânica tubular e não a marca que algum organismo tenha deixado na rocha. Mesmo não podendo chegar a uma identificação mais precisa, o estudo, publicado na Palaeontology, amplia a ocorrência desse fóssil, anteriormente restrito a China e Sibéria.

Colegas argentinos descobriram um novo cinodonte (grupo ao qual pertencem os mamíferos) em depósitos triássicos de Ischigualasto, na Argentina. Ricardo Martínez (Universidad Nacional de San Juan) e colegas denominaram a nova espécie de Diegocanis elegans e demonstraram que, em termos de animais de pequeno a médio porte, os cinodontes durante o Triássico naquela região da Argentina eram mais diversificados e abundantes do que os répteis, incluindo os dinossauros. O artigo foi publicado na Revista Brasileira de Paleontologia.