A grande maioria de nós que usufruímos dos confortos da vida moderna certamente terá dificuldades para imaginar a presença em nosso meio de doenças como a tuberculose, uma enfermidade associada com um período histórico anterior ao desenvolvimento de boa parte dos medicamentos.
Duas bactérias podem causar a tuberculose em seres humanos: a Mycobacterium bovis, presente no gado, pode ser transmitida pelo consumo de leite não pasteurizado. Porém, mais comumente, a tuberculose é causada por outro bacilo conhecido como Mycobacterium tuberculosis ou bacilo de Koch. Essa bactéria foi descrita em 1882 pelo médico alemão Robert Koch (1843-1910), que, por essa descoberta, recebeu o Nobel de medicina em 1905. Koch também desenvolveu um teste para identificar a ocorrência de tuberculose em 1890 (teste de tuberculina) que ainda é empregado, com adaptações, para a detecção da doença.
A criança doente, tela de 1885 do norueguês Edvard Munch (1863-1944), retrata sua irmã Sophie, que morrera de tuberculose aos 15 anos.
O bacilo de Koch infecta centenas de milhões de indivíduos. Estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que atualmente cerca de um terço da população mundial (2 bilhões de pessoas) talvez estejam hospedando – a maioria sem saber – esse germe em seus organismos.
Apesar de apresentar efeitos graves em apenas uma pequena fração dos indivíduos infectados, em termos mundiais, a tuberculose é a doença infecciosa que causa mais mortes: cerca de 2 a 3 milhões de pessoas são vitimadas anualmente por essa enfermidade. Embora seja mais comum em regiões pobres e com condições sanitárias e assistência médica precárias, a tuberculose também afeta indistintamente pessoas que vivem em países ricos, que sejam saudáveis e que estejam em perfeita forma física.
Esses invasores microscópicos são antigos inimigos de nossa espécie e há indícios de casos de tuberculose com pelo menos 7 mil anos. Muito freqüente na antigüidade, a tuberculose era conhecida pelos gregos como ‘tísica’ (phthisis) – palavra que significa decair, consumir ou definhar e que se relaciona com a lenta agonia dos portadores dessa doença.
Os europeus da Idade Média, por sua vez, conheciam a tuberculose como ’consunção‘, ’consumação‘ ou ainda como ’peste branca‘, termo que se referia à tonalidade pálida da pele dos tuberculosos, algo que contrastava com o rubor de seus rostos após os fortes ataques de tosse.
Identificação tardia
A tuberculose só foi identificada como uma doença única no início século 19, sendo batizada em 1839 por um professor alemão de medicina chamado Johann Lukas Schönlein (1793-1864). Esses primeiros estudos demonstraram que a tuberculose podia ser transmitida diretamente de uma pessoa para outra pela inalação de gotículas provenientes da tosse de pessoas contaminadas.
Para evitar a disseminação da doença, a partir desse período, os doentes passaram a ser enviados para se tratar em instituições conhecidas como sanatórios. Apregoava-se que, nesses locais, os tuberculosos poderiam “usufruir de uma vida mais regrada e dos benefícios do ar fresco e da boa alimentação”. Contudo, essa internação comumente representava uma sentença de morte e era freqüente que os tuberculosos permanecessem nos sanatórios pelo resto de suas vidas – algo que, na maioria dos casos, signficava alguns poucos anos a mais.
Auto-retrato do cantor e compositor Noel Rosa (1910-1937), uma das mais ilustres vítimas da tuberculose no Brasil.
A ausência de meios eficientes para se combater a tuberculose fez com que essa doença continuasse vitimando prematuramente grande número de pessoas. Entre as vítimas notórias dessa patologia podemos citar vários escritores, poetas e pintores como Noel Rosa (1910-1937), José de Alencar (1829-1877), Álvares de Azevedo (1831-1852) e Augusto dos Anjos (1884-1914) que, por sua vida boêmia, estavam mais sujeitos aos efeitos devastadores da doença.
O primeiro êxito no combate à doença foi alcançado alguns anos depois das pesquisas pioneiras de Koch e Schönlein, graças ao trabalho dos médicos franceses Albert Calmette (1861-1933) e Camille Guérin (1872-1961), que desenvolveram acidentalmente uma vacina contra a tuberculose humana a partir de linhagens atenuadas da tuberculose bovina. Essa vacina, conhecida como BCG (Bacilo de Calmette e Guérin) foi primeiramente testada em 1921 em um recém-nascido francês e é hoje amplamente empregada como forma de combate a tuberculose, apesar de ser efetiva em apenas cerca de 5% dos casos.
Com as melhorias na saúde pública, aliadas à vacinação e ao advento dos antibióticos a partir da metade do século 20, a incidência de tuberculose foi reduzida drasticamente. Entretanto, a sua eliminação completa foi frustrada pelo desinteresse dos governos em manter um combate sistemático da doença e, principalmente, após o surgimento de cepas de bacilos resistentes aos antibióticos após a década de 1980. No Reino Unido, por exemplo, onde haviam sido diagnosticados cerca de 50 mil casos da doença em 1955 e apenas 5 mil em 1987, ocorreram mais de 7 mil casos confirmados apenas em 2001.
Lenta destruição
Após ingressar em nosso corpo, os bacilos da tuberculose alcançam os alvéolos pulmonares e, dali, podem se disseminar para outros locais, como rins, cérebro e ossos, através dos nódulos linfáticos da corrente sangüínea. Nesses locais o bacilo de Koch irá causar uma lenta destruição dos tecidos e, conseqüentemente, a falência orgânica.
Essa invasão faz com que entre em ação o nosso sistema imune, que elimina a grande maioria dos bacilos. Contudo, o saldo dessa batalha é o surgimento de uma série de pequenas lesões que darão origem aos nódulos ou tubérculos que dão o nome a doença. Cientificamente, esses tubérculos, conhecidos como granulomas, são formados após um processo de inflamação crônica e apresentam em seu interior bacilos da tuberculose em estado latente. Os granulomas fazem, muitas vezes, com que a tuberculose possa permanecer insuspeita em nossos corpos durante meses, anos ou mesmo décadas.
Colônia do bacilo Mycobacterium tuberculosis, causador da tuberculose, cultivada em laboratório (foto: G. Kubica/CDC).
Como o bacilo de Koch não tem toxinas ou enzimas histolíticas, sua virulência está associada com a capacidade desses patógenos de escapar do ataque de células de defesa imune (principalmente macrófagos) e de causar reações de hipersensibilidade retardada – um dos fatores responsáveis pela destruição tecidual dos tuberculosos.
Entretanto, em algumas situações, como, por exemplo, em casos de debilidade imune, o bacilo de Koch pode, de forma oportunista, voltar a se multiplicar e causar os efeitos danosos da doença. Contudo, apenas cerca de 10% das pessoas infectadas irão desenvolver a tuberculose, cerca de 5% nos dois primeiros anos, e o restante mais tarde.
Por afetar principalmente pessoas com deficiência imune, a tuberculose tem estado associada com quadros de contaminação por HIV/Aids e tem se convertido em uma das principais causas de mortalidade de indivíduos portadores desse vírus.
O longo período de incubação da tuberculose é considerado uma das razões para sua elevada taxa de disseminação em escala mundial. Como a doença permanece oculta durante um longo período, seus portadores se encarregam de disseminar a tuberculose para outras pessoas por meio de espirros e tosse. Outro desafio é a dificuldade de se detectar a infecção por tuberculose que não pode ser diagnosticada por exames de sangue rotineiros. Mesmo pesquisas com o bacilo de Koch são difíceis, pois esses germes desenvolvem-se cerca de 20 a 100 vezes mais lentamente que outras bactérias, sendo necessários de 4 a 6 semanas para a obtenção de uma colônia de Mycobacterium tuberculosis.
Nuvens de germes
A permanência em ambientes fechados, úmidos e pouco ventilados eleva as chances de se contrair a tuberculose, pois nuvens de germes da doença podem permanecer suspensas no ar por várias horas. Por esse, motivo essa doença é tão comum e disseminada em presídios.
Outro problema associado com essa doença é a necessidade de se tomar diariamente durante meses a fio (seis meses em infecções comuns e até dois anos em caso de tuberculose multirresistente a antibióticos), um coquetel de medicamentos destinados a eliminar os últimos bacilos do corpo. Essa medicação, muitas vezes, gera efeitos colaterais e é compreensivelmente difícil fazer com que alguém que não apresenta há algum tempo qualquer sintoma da doença seja obrigado a continuar o tratamento. O problema é que, se o individuo interrompe a sua terapêutica antecipadamente, serão selecionados bacilos resistentes à medicação e a doença voltará com força redobrada após algum tempo.
Como o sistema de saúde da maioria dos países está voltado ao combate de moléstias como a Aids, a gripe aviária ou a febre amarela (moléstias que, sem dúvida, também são importantes), neste ano que recém-iniciamos morrerão mais pessoas por tuberculose do que em qualquer época da história da humanidade e do que devido a qualquer uma dessas doenças anteriormente citadas. Apenas no Brasil, estima-se que surjam a cada ano 90 mil casos novos de tuberculose, dos quais cerca de 6 mil têm desfecho fatal.
A esperança para o combate a tuberculose situa-se na expectativa da descoberta de algum medicamento ou vacina mais efetivos ou de um tratamento mais curto. Porém, essas pesquisas necessitam de investimento financeiro e a tuberculose, apesar de responsável por um número tão grande de mortes, ainda é diagnosticada com um método originado em 1890, prevenida por uma vacina pouco efetiva e tratada por medicamentos criados na década de 1960.
Infelizmente, a grande maioria das pessoas infectadas pelo bacilo de Koch é pobre e, por isso, desassistida. Devemos, porém, nos lembrar que elas têm o mesmo direto de cidadãos como nós e que a disseminação de doenças como a tuberculose pode gerar uma bomba de efeito retardado, que futuramente afetará a todos de forma igual e indistinta. Afinal, você daria crédito a alguém que, alguns anos atrás, falasse sobre os riscos de epidemias de dengue e da febre amarela?
Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line
18/01/2008
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