Sonata de Natal

 

A sonata é uma forma musical típica do Classicismo que consiste em três partes: exposição, em geral com dois temas, desenvolvimento e recapitulação.

Em 1881 as imagens de Papai Noel de Thomas Nast na Harper’s Weekly já tinham as características modernas do nosso ícone natalino de hoje.

Exposição: Tema 1
Uma das imagens mais dominantes da temporada de Natal é o Papai Noel. Embora o personagem tenha inspiração hagiológica em São Nicolau (século 4), em nossa cultura o bondoso velhinho hoje em dia não tem mais qualquer associação religiosa.

A gênese do Papai Noel laico pode ser traçada ao ano de 1822, quando Clement Clark Moore, um professor de literatura grega de Nova Iorque, publicou o poema “Uma visita de São Nicolau”, escrito para seus filhos. O texto original já incluía a imagem de um trenó puxado por renas voadoras e mostrava a entrada pela chaminé (peripécia de considerável dificuldade logística no Brasil e em outros países tropicais).

Mas a pessoa responsável pela divulgação da figura moderna de Papai Noel foi o cartunista e jornalista Thomas Nast (1840-1902). Em 1863, ele publicou na Harper’s Weekly, uma das principais publicações americanas da época, a efígie original de Santa Claus. Posteriormente, ele aprimorou a imagem até chegar às características icônicas que caracterizam Papai Noel para nós (ver figura).

Exposição: Tema 2
Além de responsável pelo desenvolvimento da imagem de Papai Noel, há outra excelente razão para termos Thomas Nast como destaque nesta coluna.

Entre 1860 e 1873, um poderoso cartel de corrupção política vitimou a cidade de Nova Iorque. Era o chamado Tammany Hall, liderado por William M. “Boss” Tweed (1823-1878). Com o apoio de grandes empresários (especialmente de Jay Gould, magnata das ferrovias), Tweed literalmente saqueou as finanças da metrópole, tendo desviado mais de 100 milhões de dólares. Se considerarmos a inflação, as cifras seriam astronomicamente altas hoje, excedendo até os recentes escândalos brasileiros.

Caricatura de “Boss” Tweed feita por Thomas Nast e publicada na Harper’s Weekly em 1871.

Indignado, Nast empreendeu nas páginas da Harper’s Weekly uma enérgica campanha, expondo as falcatruas de “Boss” Tweed, Jay Gould e seus asseclas. Acredita-se que suas ferozes charges políticas (ver figura) foram instrumentais em expor o esquema ao público e à justiça, levando à prisão de Tweed em 1873.

Lembro aqui que, como grande parte da população de Nova Iorque naqueles tempos não era alfabetizada, as caricaturas tinham um papel chave em comunicação. Mais tarde, quando Tweed tentou fugir para a Europa, foi a popularidade de sua imagem divulgada pelas charges de Nast que permitiu sua identificação e prisão pela imigração em Vigo, na Espanha.

Desenvolvimento
Sem dúvida a imagem de Papai Noel desenvolvida pelo cartunista Thomas Nast é extremamente atraente e simpática, sendo explorada extensivamente em propagandas comerciais (há inclusive uma lenda errônea, divulgada na internet, de que foi a Coca-Cola que criou a imagem de Papai Noel). Aliás, devem ser motivo de intensas investigações psicológicas e mercadológicas quais são as características que tornam uma imagem atraente e simpática a nível mundial. Alguns exemplos do mundo animal são intrigantes nesse sentido.

Três animais “fofos”: o panda gigante, o coala e o leão marinho. A simpatia das imagens não se traduz em comportamento amistoso com relação a humanos. 

Os adoráveis panda gigante, coala e leão-marinho são grandes ícones, favoritos do público, verdadeiras “fofuras”. Entretanto, a realidade é outra. Todos três apresentam comportamento freqüentemente irascível e bastante agressivo com relação aos humanos. Recentemente, a imprensa americana divulgou uma série de ataques de leões-marinhos a pessoas e embarcações na baía de São Francisco, onde eles são abundantes. Quem tem uma boa imagem certamente tem tudo.

Um dos animais mais simpáticos que conheço, a Opabinia regalis, já está extinta há algumas centenas de milhões de anos (ver figura abaixo). A opabínia, um dos estranhos invertebrados que habitavam os mares cambrianos, é bastante diferente de todos os animais que conhecemos hoje: tinha cinco olhos em formato de cogumelo, uma tromba com garra na extremidade, ausência de pernas e um corpo muito peculiar, com cerca de 8 centímetros de comprimento. Uma simples animação com a opabínia em movimento pode ser vista aqui.

O livro Vida maravilhosa, pelo meu ídolo Stephen Jay Gould, fornece uma descrição espetacular da opabínia e de seus amigos cambrianos . Deixe-me esclarecer logo de início que Stephen Jay Gould não é genealogicamente relacionado a Jay Gould, o financista associado a Tweed no esquema de corrupção de Tammany Hall. Mas a presença dos dois homônimos nesta coluna não é acidental. Como em uma sonata, alguns dos tópicos abordados aqui se repetem, com variação de roupagem.

Opabinia regalis, nossa “coelhinha” do mês, em três poses: uma impressão em lama fossilizada, um esquema da estrutura corporal e uma reconstrução artística.

O título de Vida maravilhosa é uma referência ao filme de 1946 It’s a wonderful life, dirigido por Frank Capra e estrelado por Jimmy Stewart, que é sempre reprisado na época de Natal nos Estados Unidos.

O livro tem dois enredos, entrelaçados como as hélices do DNA. Um é simples e direto: a descrição de uma das maiores descobertas fósseis de todos os tempos – uma coleção de invertebrados do início do período Cambriano (550 milhões de anos atrás) encontrada perto do Monte Burgess, na Columbia Britânica, Canadá. Como esses animais não tinham endosqueleto nem exosqueleto, a morfologia tem de ser inferida pelas impressões que os seus corpos moles deixaram na lama, agora petrificada (ver figura). Com seu estilo erudito, Gould descreve de maneira envolvente como a evidência fora interpretada equivocadamente pelo paleontólogo americano Charles Walcott (1850-1927).

No outro enredo desse livro, Gould sugere que a variedade extraordinária dos fósseis cambrianos indica que havia uma enorme diversidade de planos corporais na época, dentre os quais apenas um perdurou evolucionariamente para gerar todos os artrópodes e vertebrados dos dias de hoje. A partir daí, ele faz uma série de especulações fascinantes sobre a natureza do processo evolucionário, focalizando especialmente o papel da contingência histórica, como já discutimos em uma coluna anterior.

Ironicamente, pesquisas posteriores realizadas por Simon Conway Morris (1951 -) e seus colaboradores na Universidade de Cambridge (Reino Unido) mostraram que as formas de vida encontradas no depósito de Burgess eram de fato evloucionariamente relacionadas com organismos contemporâneos e que Gould também havia, como Walcott, interpretado equivocadamente a evidência. Acredita-se agora que a opabínia era próxima de organismos precursores dos artrópodes.

Recapitulação
A música e seus três elementos fundamentais, variação, repetição e contraste, atingiram sua perfeição formal na sonata clássica, a exemplo dos seis quartetos de corda do austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) dedicados a seu compatriota Joseph Haydn (1732-1809). Tentamos seguir o formato da sonata nesta coluna.

Iniciamos expondo dois temas: o poder das imagens de evocar emoções e o poder de imagens e informações jornalísticas alavancarem importantes ajustes no etos político da sociedade. Nosso herói deste mês, Thomas Nast, conseguiu criar um dos emblemas de Natal mais cultivados, valorizados e, por que não dizer, explorados de nossa cultura ocidental. Pari passu, ele conseguiu com sua arte e com sua capacidade de comunicação o feito histórico de contribuir de maneira decisiva para o saneamento do cenário político do seu tempo.

A nefasta associação entre políticos e empresários para corrupção, instituída em Nova Iorque na segunda metade do século 19 por “Boss” Tweed et al., certamente traz à mente a triste situação da política brasileira neste início de século, caracterizada pelo que o jornalista Elio Gaspari chama de “contubérnio de parlamentares e empreiteiros”. Resta-nos o alento de exemplos como de Nast em Nova Iorque, em que foi possível controlar a corrupção, pelo menos nas suas manifestações mais acintosas e daninhas.

Deixo aqui registrado um pedido para Papai Noel no Natal de 2007: que ele nos traga de presente renovadas doses de audácia e vigor, para que nossa imprensa continue a expor a corrupção e o fisiologismo político, influenciando a sociedade a se tornar cada vez mais ética, responsável e criteriosa. Espero que, em um futuro não muito distante, nossos políticos corruptos e nossos empreiteiros corruptores estejam tão extintos quanto a opabínia.


Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
14/12/2007