Podemos dizer que essa história começou com uma metáfora elaborada em 1894, quando Emil Fischer (1852-1919), prêmio Nobel de Química de 1902, considerou que as enzimas e seus substratos devem se encaixar estruturalmente como uma chave e uma fechadura.
Só quando há esse casamento estrutural é que o sistema enzima-substrato pode iniciar sua ação bioquímica. Para além da metáfora, os trabalhos de Fischer inspiraram gerações de bioquímicos, todos fascinados pela ação catalítica das enzimas.
A história dessa área da bioquímica registra um grande número de estudos acerca dos detalhes e princípios que governam as transformações de moléculas reagentes em produtos, deixando de lado a investigação do destino do calor envolvido na reação.
Uma primeira iniciativa nessa direção, tendo os sistemas biológicos em geral como foco, foi apresentada por Erwin Schrödinger (1887-1961) em seu clássico livro O que é vida? O aspecto físico da célula viva, de 1943. Mas foram necessários mais de 50 anos, desde esse manifesto de Schrödinger, para que a metáfora de Fischer fosse considerada pela via da termodinâmica.
Há muito tempo conhecemos os complexos movimentos das células vivas e suas funcionalidades. Sabemos, por exemplo, que uma única célula é capaz de criar uma cópia de si mesma em menos de uma hora, de corrigir erros em seu próprio DNA, de extrair energia no processo da fotossíntese e de realizar diferentes tipos de movimentos lineares e rotacionais.
Tudo isso tem convergido para a noção de nanomotor biológico e para tentativas inspiradas em seu comportamento que levem à fabricação de dispositivos artificiais, ou seja, nanomáquinas capazes de converter energia em movimento e força.
Entre os movimentos complexos observados nos sistemas celulares naturais, um está despertando grande interesse atualmente: a difusão anômala de enzimas após reação catalítica.
Além de modelos matemáticos, resultados experimentais têm mostrado que, após a catálise, algumas enzimas se movimentam mais rapidamente. Tudo indica que esse aumento da difusão tem a ver com o tipo de substrato e com a velocidade da reação bioquímica.
Embora seja do conhecimento de todos que há liberação de energia durante essas reações, nenhuma das explicações apresentadas até recentemente levaram em conta o efeito do calor liberado sobre o processo de difusão anômala.
Efeito quimioacústico
Em trabalho publicado na edição on-line da revista Nature, em 10 de dezembro último, Clement Riedel e colaboradores apresentam um modelo segundo o qual as enzimas catalase, urease e fosfatase alcalina podem surfar em ondas de calor produzidas pelo que eles denominam ‘efeito quimioacústico’.
O modelo funciona se o ponto ativo da reação estiver fora do centro de massa da enzima. Então, o calor liberado sob a forma de uma onda de pressão alcança a interface entre a enzima e o solvente em momentos diferentes.
Isso significa que a pressão é maior em uma parte da enzima do que em outra – e é essa diferença que a impulsiona. Se o centro da reação estivesse no centro de massa da enzima, não haveria diferença na pressão, e ela não se deslocaria.
Os resultados experimentais foram obtidos com espectroscopia de fluorescência de correlação (FCS, na sigla em inglês), uma técnica especialmente apropriada para testar o modelo.
Ao contrário das técnicas calorimétricas usuais, que medem a energia liberada na reação como uma média para um conjunto de moléculas, a FCS permite avaliar o comportamento de moléculas individualmente, bem como os efeitos (conhecidos tecnicamente como ‘transientes’) produzidos pela reação em curtos intervalos de tempo. O deslocamento do centro de massa da enzima durante esse momento transiente foi denominado ‘efeito quimioacústico’.
Os pesquisadores fizeram vários testes para excluir a possibilidade de interferência de outros mecanismos. Por exemplo, para mostrar que o aumento da difusão tem a ver com a reação química e não apenas com o processo de acoplamento e desacoplamento da enzima ao substrato, fizeram experimentos com a enzima catalase na presença de trinitreto de sódio, que inibe sua ação catalítica.
Na presença do inibidor, a enzima se associa ao substrato e dele se desassocia sem criar qualquer produto, ou seja, não ocorre reação catalítica. O coeficiente de difusão permanece o mesmo, antes e após a associação.
Para validar a interpretação, as enzimas foram aquecidas diretamente com um feixe de laser que fornece energia similar àquela produzida na reação catalítica. Os resultados mostraram que de fato a enzima teve seu coeficiente de difusão aumentado após a incidência do laser.
Portanto, o aumento do coeficiente de difusão, observado por vários pesquisadores, é uma consequência da liberação de calor durante a reação bioquímica catalisada pela enzima.
Embora se trate de uma interpretação inovadora para um fenômeno conhecido há muito tempo, o trabalho de Riedel e colaboradores está longe de representar a realidade, que parece ser bem mais complexa.
Para se aproximar do que se imagina ser a realidade, o modelo deve evoluir para a inclusão de detalhes microscópios e levar em conta o fato de que tanto a enzima como o ambiente em sua volta são inomogêneos. Para simplificar o tratamento matemático, os autores consideraram esses materiais homogêneos.
Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana