Tudo indica que os avanços da biologia sintética, da biologia quântica e da biologia sistêmica farão das ciências da vida um marco importante no paradigma científico deste século. Parte desse sucesso deve-se à termodinâmica, ciência que, embora tenha surgido há mais de 150 anos, apenas nos últimos 50 teve sua importância reconhecida no estudo dos sistemas biológicos. Como veremos a seguir, essa demora tem a ver com a indisponiblidade de recursos matemáticos, que só começaram a aparecer no final dos anos 1940, com os estudos de Prigogine.
O passo inicial para esse reconhecimento foi dado por Erwin Schrödinger, em 1944, ao publicar seu memorável livro O que é vida?. Suas reflexões dirigiram-se para o aspecto físico da célula viva, incluindo mecânica quântica, termodinâmica e mecânica estatística. O livro de Schrödinger influenciou muitos cientistas, incluindo James Dewey Watson, que decidiu investigar os “códigos de instruções hereditárias” sugeridos por Schrödinger e terminou chegando à definição da estrutura molecular do DNA, em colaboração com Francis Crick e Maurice Wilkins. No entanto, foi Ilya Prigogine quem providenciou os recursos operacionais para a aplicação da termodinâmica, com o desenvolvimento da termodinâmica dos sistemas dissipativos, a partir do final dos anos 1940, pelo qual ganhou o Nobel de Química de 1977.
A termodinâmica clássica – aquela habitualmente tratada nos livros textos, da educação básica à universitária – refere-se a sistemas fechados em condições de equilíbrio. Mas os sistemas naturais, como materiais biológicos, constituem sistemas abertos em condições de não-equilíbrio. Por isso, as ferramentas elaboradas na termodinâmica clássica normalmente não podem ser usadas nos sistemas biológicos.
A segunda lei da termodinâmica diz que os sistemas em equilíbrio evoluem para um estado no qual a energia é mínima e a entropia é máxima. Vejamos. A entropia é um conceito de difícil compreensão. Na linguagem popular, ela é associada à desordem, mas, na linguagem científica, pode ser associada à indisponibilidade de energia – ou seja, quanto maior a entropia, menos energia disponível – ou à quantidade de microestados em que um sistema pode se encontrar.
Observe o exemplo simples apresentado na figura abaixo. Trata-se de duas moléculas gasosas em um recipiente com dois compartimentos. No Estado 1, as duas moléculas ficam restritas a um dos lados. Esse é o estado de entropia mínima, o estado mais organizado, pois sabemos precisamente em qual compartimento as moléculas se encontram. Ao se abrir a comporta que separa os dois compartimentos, o sistema passa para o Estado 2, com três possíveis configurações, ou microestados. As duas moléculas podem permanecer em um dos lados, ou uma molécula fica em um dos lados e a outra no lado oposto. Esse estado tem entropia maior, porque tem três possíveis microestados. Podemos também dizer que é o estado mais desorganizado, pois não podemos saber em qual microestado o sistema se encontra.
O paradoxo observado por Schrödinger foi que os sistemas vivos tendem para estados de maior ordem, ou seja, de menor entropia, em aparente contradição com a segunda lei da termodinâmica. Os seres vivos são sistemas altamente organizados. Como isso é possível?
Ordem no caos
A saída imediata para o encaminhamento da solução é o reconhecimento de que os sistemas vivos não obedecem à termodinâmica clássica, a que denominamos de equilíbrio. Eles não são sistemas fechados, mas abertos, e trocam matéria e energia com seu meio ambiente. É aí que está o início da explicação. Mas Schrödinger ainda não sabia como transformar isso em equações: esse conhecimento veio com os trabalhos de Prigogine. Mas o primeiro, o ‘pai da mecânica quântica ondulatória’, adiantou reflexões que logo depois foram utilizadas pelo segundo, o ‘poeta da termodinâmica’.
A tendência dos sistemas que obedecem à termodinâmica clássica é a morte rápida, quando a energia é mínima e a entropia é máxima. Agora, como os organismos vivos evitam isso ao longo de um grande período? Para alguns seres humanos esse período pode passar de um século. Como diz Schrödinger, a resposta óbvia é: comendo, bebendo e respirando. O termo técnico disso é metabolismo, que significa troca. Troca do quê? O que é que nosso corpo recebe para evitar o aumento de entropia que o levaria à morte? A resposta de Schrödinger foi ousada e muito combatida por uma parte da comunidade científica: os seres vivos extraem entropia negativa do meio ambiente. Ou seja, os organismos se alimentam na verdade de entropia negativa, para não deixar sua entropia interna se aproximar do máximo.
Prigogine transformou isso em equações, com a criação da termodinâmica de não-equilíbrio, a termodinâmica aplicável aos sistemas dissipativos, como os seres vivos e todos os materiais biológicos. Sistemas que trocam matéria e energia com o meio ambiente, e evoluem de modo irreversível, do nascimento à morte.
A teoria de Prigogine começa com a definição da entropia total, constituída de dois termos: a entropia interna, cujo crescimento é sempre igual ou maior do que zero, e a entropia transferida do meio ambiente, cujo crescimento pode assumir qualquer valor, maior, igual ou menor que zero, de modo que a entropia total sempre cresce.
Reconhecimento tardio
Embora tenha sido criada no final dos anos 1940, a teoria de Prigogine só foi extensivamente usada em estudos biológicos a partir dos anos 1990, um comportamento muito similar ao apresentado pelos artigos contendo, ao mesmo tempo, os termos biologia e física.
O desafio que esta realidade coloca para professores de biologia, física e química é a elaboração da correspondente transposição didática para disciplinas universitárias básicas. Até que ponto, e de que modo, é possível tratar o tema em cursos básicos? Pelo que se sabe dos currículos nacionais, estamos um tanto longe disso. As disciplinas básicas oferecidas pela física limitam-se à termodinâmica de equilíbrio. Raramente os departamentos de química oferecem cursos específicos sobre termodinâmica – geralmente, o tema é incluído em disciplinas como físico-química. Da mesma forma, nos cursos de biologia, o tema ora aparece na biofísica, ora na bioquímica. Portanto, se quisermos que os avanços científicos oriundos da termodinâmica de não-equilíbrio tenham reflexos na formação de profissionais das ciências da natureza, precisamos de uma abordagem didática interdisciplinar já nos cursos universitários básicos.
Carlos Alberto dos Santos
Professor aposentado do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)