Todo pardo ou preto pode ser general?

O Brasil é negro. Até aqui, nenhuma novidade. O país o é desde pelo menos o século 17, quando o número de africanos escravizados trazidos da África para o Brasil ultrapassou a marca do milhão. A novidade é que o Brasil, hoje, em 2010, é oficialmente um país majoritariamente habitado por negros e pardos, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Foi assim que o historiador Luiz Felipe de Alencastro, professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris IV Sorbonne e autor de O trato dos viventes (Companhia das Letras), iniciou na semana passada a leitura de seu Parecer sobre a arguição de descumprimento de preceito fundamental, ADPF/186, apresentada ao Supremo Tribunal Federal, representando a Fundação Palmares.

O título não explica, mas o assunto não sai dos jornais: cotas raciais para negros e pardos nas universidades. Em especial, aqui se discutia o caso da Universidade de Brasília (UnB), cuja política de cotas raciais foi questionada pelo Partido Democratas (DEM), que argumenta ser inconstitucional o critério racial para seleção de candidatos para ingresso naquela universidade.

Nunca houve tanto consenso sobre a necessidade de se aprofundar o conhecimento sobre a escravidão brasileira

A questão das cotas raciais é mais do que polêmica, e não será daqui que sairá a solução para o problema. Mas é o caso de realçar a fala de Alencastro naquilo que ela traz de consensual entre favoráveis e contrários à adoção do sistema de cotas raciais nas universidades brasileiras: a importância do conhecimento sobre a escravidão brasileira.

Nunca a história esteve tão no centro do debate público, e nunca houve tanto consenso sobre a necessidade de se aprofundar o conhecimento sobre a escravidão brasileira, principalmente durante o século XIX, quando, já independente, o país optou por manter a escravidão.

Nas palavras de Alencastro:

“Na realidade, nenhum país americano praticou a escravidão em tão larga escala como o Brasil. Do total de cerca de 11 milhões de africanos deportados e chegados vivos nas Américas, 44% (perto de 5 milhões) vieram para o território brasileiro num período de três séculos (1550-1856). O outro grande país escravista do continente, os Estados Unidos, praticou o tráfico negreiro por pouco mais de um século (entre 1675 e 1808) e recebeu uma proporção muito menor – perto de 560.000 africanos, ou seja, 5,5% do total do tráfico transatlântico. No final das contas, o Brasil se apresenta como o agregado político americano que captou o maior número de africanos e que manteve durante mais tempo a escravidão.” 

Veja abaixo um vídeo com a fala do professor
Alencastro no STF (a partir do 49º minuto).

Cidadania de negros e mulatos

Além de ser o país que mais recebeu africanos e que por mais tempo manteve a escravidão, o Brasil também foi o país com maior número de libertos e negros livres no século 19. Ou seja: além de sermos o país com mais escravos, éramos também o país das Américas com maior número de negros e mulatos livres e libertos. Isso justamente quando o Brasil, recém independente, precisava definir quem eram seus cidadãos. Como considerar os libertos e negros livres? Escravos não eram. Seriam cidadãos? 

De acordo com a Constituição de 1824, a primeira do Brasil independente, sim. Não foram instituídos critérios raciais definidores da cidadania brasileira, pelo menos em seu nível básico, o dos direitos civis. Ou seja: libertos e seus descendentes eram considerados cidadãos com quase todas as prerrogativas dos demais cidadãos brasileiros, inclusive com direito de voto como eleitores de primeiro grau.

A ausência histórica de critérios raciais definidores da cidadania é um empecilho para a adoção de cotas?

O que nos leva de volta a uma das questões propostas por Alencastro e também discutidas por vários intelectuais, tanto favoráveis quanto oponentes às cotas: o fato de não ter havido critérios raciais definidores da cidadania brasileira, nem no Império nem na República, é ou não um empecilho para a adoção, hoje, das cotas raciais?

Para alguns, instituir hoje critérios raciais de diferenciação entre os cidadãos é criar fronteiras onde, ao menos na letra da lei, elas nunca existiram. Para outros, o fosso entre a sociedade formal – onde direitos de cidadania eram extensivos a libertos e seus descendentes – e a sociedade real – na qual esses direitos dificilmente eram colocados em prática –, só reforça a necessidade de, hoje, estabelecer critérios formais e objetivos para possibilitar que a sociedade mude na prática.

É o velho paradoxo da igualdade, como recentemente lembrou Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, ao conclamar a sociedade e a Suprema Corte para uma discussão mais aprofundada sobre o assunto:

“(…) toda igualdade de direito tem por consequência uma desigualdade de fato, e toda desigualdade de fato tem como pressuposto uma desigualdade de direito (…). Assim, o mandamento constitucional de reconhecimento e proteção igual das diferenças impõe um tratamento desigual por parte da lei. O paradoxo da igualdade, portanto, suscita problemas dos mais complexos para o exame da constitucionalidade das ações afirmativas em sociedades plurais”.

 

A contribuição de Rebouças

Antonio Rebouças
O intelectual baiano Antonio Pereira Rebouças (1798-1880), que lutou pela independência na Bahia e dividiu sua vida entre o exercício da advocacia e a política (reprodução).

Para adicionar alguns elementos à discussão, proponho retomar ao modo como ela era discutida no próprio século 19 por intelectuais e parlamentares negros. Um desses intelectuais parlamentares foi o baiano Antonio Pereira Rebouças (1798-1880), ninguém menos do que o pai de André Rebouças, um dos mais importantes abolicionistas que o Brasil conheceu. 

Mulato, destaque nas lutas pela independência na Bahia, autodidata, Rebouças dividiu sua vida entre o exercício da advocacia e a política. Especialista em direito civil, devotou boa parte de sua trajetória parlamentar à defesa dos princípios liberais da cidadania brasileira.

Ele não se cansava de repetir o parágrafo 14 do artigo 179 da Constituição de 1824, segundo o qual “Todo o cidadão pode ser admittido aos Cargos Publicos Civis, Politicos, ou Militares, sem outra differença, que não seja dos seus talentos, e virtudes”, que lhe servia também de argumento para uma de suas frases favoritas: “todo pardo ou preto pode ser general.”

Rebouças combatia qualquer distinção entre os cidadãos que não fosse baseada nos talentos e nas virtudes

Rebouças defendia a “igualdade entre as cores” e a ausência de qualquer distinção entre os cidadãos que não fosse baseada nos talentos e nas virtudes. Liberal até a raiz dos cabelos, ele se recusava a admitir critérios que lembrassem os velhos tempos do Antigo Regime – como, por exemplo, o fato de que libertos não poderiam ser oficiais da Guarda Nacional simplesmente porque, um dia, haviam sido escravos. Para ele, era  “inconstitucional, inadmissível, injusto e absurdo” que ter nascido livre fosse condição para o exercício do oficialato da Guarda Nacional.

Na década de 1830, Rebouças ficou marcado como um político radical, por ser contra a introdução de outros critérios que não a cor na classificação dos cidadãos brasileiros. À medida que o cenário político do Império se tornava mais conservador, sua reeleição foi ficando cada vez mais difícil. Até que, em 1848, teve que abandonar a política, derrotado por uma visão de mundo que, embora concebesse a igualdade civil entre os cidadãos brasileiros, negava-a na prática.

Atenção aqui: Rebouças não foi derrotado por defender os princípios da cidadania brasileira expressos na Constituição. Ele caiu no ostracismo por lembrar o tempo todo que, entre esses cidadãos dos quais falava a Constituição, estavam necessariamente também negros e mulatos, livres e libertos. E ele era um deles.

Igualdade formal e real

Não deixa de ser curioso observar o quanto mudou a sociedade brasileira desde então: opondo-se a uma sociedade que naturalizava as diferenças, como era a sociedade colonial brasileira, Rebouças defendia radicalmente a igualdade formal entre os cidadãos. Ela seria, para ele, a única maneira de garantir o avanço rumo à igualdade real.

Que os Rebouças de hoje sejam conhecidos pelo que falam, e não pela cor de suas peles

Hoje, tantos anos depois da instauração da igualdade formal entre os cidadãos, a defesa é justamente a da introdução de mecanismos formais de diferenciação entre os cidadãos, já que a instauração pura e simples dos princípios liberais não contribuiu para acabar com a desigualdade entre as cores.

Tomara que chegue logo o dia em que a cor não importará para a qualificação do cidadão. Aí as cotas, de qualquer tipo, não serão mesmo mais necessárias, os Rebouças de hoje serão conhecidos pelo que falam, e não pela cor de suas peles.

Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro