A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) revelou, em nota técnica que causou rebuliço, que, nos últimos anos, o Brasil vem usando larvicidas em depósitos de água potável em áreas carentes, como forma de controle de mosquitos transmissores de dengue, zika e chikungunya. Isso me levou a investigar o processo de avaliação e classificação de agentes de risco por parte de entidades multilaterais como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e autoridades sanitárias nacionais, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Tomei como exemplo o piriproxifeno, que é o larvicida atualmente utilizado, em substituição ao temephós, ao qual os mosquitos já não respondiam. Como bom cidadão e patriota, comecei a busca no país, no site do Ministério da Saúde (MS). Usando piriproxifeno como termo de busca, logo achei duas instruções técnicas para uso do produto, datadas de maio e julho de 2014. Ambas insistem na baixa toxicidade do larvicida para mamíferos (terrível, mas só contra os insetos, lembra?) e no fato de que o produto é recomendado pela OMS. Que bom.
Mas me deparei também com um trecho preocupante: “Em razão da baixa dose empregada e da segurança, os depósitos deverão ser tratados pela sua capacidade (volume total). É fundamental a cubagem do volume antes de fazer a aplicação do produto”. Hum… Então, se uma caixa de 1.000 litros só contiver 100 litros, a concentração do larvicida na água será dez vezes maior do que o recomendado. Pior: se, na próxima visita do agente sanitário, a caixa contiver os mesmos 100 litros já tratados, com a nova aplicação a concentração de larvicida será 20 vezes maior do que o recomendado.
As instruções técnicas que citei acima afirmam que o larvicida foi registrado na Anvisa sob o número 3.2586.0009.001-1 e com o nome comercial Sumilarv-0.5G. No entanto, quando realizei uma busca no site da Agência, não houve resultado para piriproxifeno, nem para o registro 3.2586.0009.001-1, nem para Sumilarv-0.5G. Tudo bem, acontece nas melhores instituições.
Os textos do MS esclarecem, ainda, que o piriproxifeno foi escolhido em “licitação feita pelo Fundo Rotatório da OPAS/OMS para aquisições de praguicidas (adulticidas e larvicidas) referente ao biênio 2013/2014, que apontou como produto mais econômico o larvicida piriproxifeno (Sumilarv®), fabricado pela empresa Sumitomo Chemical, sendo este, portanto o larvicida adquirido”. Certo. Então, o critério para a escolha de um larvicida a ser adicionado à agua potável de milhares de pessoas foi o preço. Mas calma! O licitante é também órgão normativo e garante que está tudo bem. Frase estranha, não acha?
Diretrizes sem referências
Resta-nos consultar o grande oráculo, a OMS, cujo beneplácito ao piriproxifeno é brandido como salvo-conduto por nossas autoridades de saúde e pelas dos outros também. Buscando por piriproxifeno no site da organização internacional, encontro o polpudo relatório “Chemical Fact Sheets”, parte dos Guidelines of Drinking Water Quality, publicação que trata do piriproxifeno em suas páginas 439 a 440. Ali encontro, entre outros trechos bizarros (a tradução é minha):
“Não é considerado apropriado estabelecer um valor formal de referência para piriproxifeno usado em controle de vetores em água potável. A dose máxima recomendada de 0.01 mg/l seria equivalente a menos de 1% do limite superior de ingestão diária aceitável alocada para água potável para um adulto de 60kg que bebe 2 litros de água ao dia”.
Trocando em miúdos: não é apropriado estabelecer valores de referência, mas eles foram estabelecidos mesmo assim.
Passemos então ao prato principal, o documento “Piriproxifen in Drinking-water: Use for Vector Control in Drinking-water Sources and Containers – Background document for development of WHO Guidelines for Drinking-water Quality”, de 2008. Ele tem uma introdução muito interessante, que explica como o documento foi gerado (tradução e comentários meus):
“Para cada contaminante químico ou substância considerada, uma instituição líder [Quem escolheu? Com que critérios?] preparou um documento base avaliando [Como?] os riscos [Quais?] para a saúde humana em função da exposição ao composto considerado em água potável. Instituições [Quais? De que tipo? Quem escolheu?] do Canadá, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Itália, Japão, Holanda, Noruega, Polônia, Suécia, EUA e Reino Unido prepararam documentos para a 3a edição e adendos. Sob a supervisão de um grupo de coordenadores [Escolhidos por quem?], cada um responsável por um grupo de compostos considerados no GDWQ (Guidelines for Drinking-water Quality), os documentos de critério de saúde foram submetidos a um certo número [?] de instituições científicas [?] e experts [?] selecionados [Como e por quem?] para revisão pelos pares.”
Se o trecho acima constasse da seção “materiais e métodos” de um relatório técnico de bolsista de iniciação cientifica, ele seria massacrado pelo orientador. Mas não estamos na universidade, estamos na OMS.
Aliás, note que, entre os países que enviaram documentos para compor o texto da OMS, não há nenhum tropical. Entre os coordenadores, há um único especialista em pesticidas, Festo Ngowi AV, da Tanzânia, que não tem nenhum trabalho publicado, apenas relatórios no site da OMS. Curioso, não?
E vamos ao corpo do documento base. No seu item 2, “Níveis ambientais e exposição humana”, ficamos sabendo que, uma vez que o piriproxifeno é um pesticida relativamente novo, há poucos dados ambientais sobre ele – pelo menos até a época da publicação do documento que, lembrando, é de 2008. A seguir, são mencionados, mas não citados, dois estudos sobre borrifação de piriproxifeno em cítricos nos EUA e Israel, em que não se detectou piriproxifeno na água. Logo, conclui-se que a exposição ao piriproxifeno por meio da ingestão de alimentos e água potável será muito baixa. Lá vai o bolsista apanhando de novo…
O item seguinte, de número 3, é o “Sumário toxicológico”. Ele resume estudos em ratos, cães e cabras, não citados e muito menos descritos, que levariam à conclusão de que o produto não é cancerígeno em humanos, e também não seria genotípico ou mutagênico, embora não especifiquem se apenas para ratos ou se para humanos também. Mas o bolsista foi salvo desta vez, pois o sumário toxicológico baseia-se em uma referência, outro documento da OMS, publicado em 2000.
Aleluia, finalmente um texto que não é ferozmente esquizofrênico e tem até referências! Explica absorção, distribuição, excreção, biotransformação e outros aspectos do piriproxifeno. Que beleza. No total, há 46 referências de 23 autores, das quais apenas quatro foram publicadas em revistas indexadas e com conselho editorial e revisão pelos pares. As outras 42 são relatórios produzidos pelo próprio fabricante ou por empresas privadas contratadas pelo mesmo. Já ouviu falar em conflito de interesse?
Detalhe perverso: os relatórios são submetidos em papel e cada um pesa, no mínimo, três quilos. A ideia é mesmo dificultar a difusão e, sobretudo, a análise pelos comitês técnicos da OMS. As informações são fragmentadas ao longo dos volumes do relatório; fiapos de informação essencial são dispersos em mares de informação irrelevante – há muito ruído e pouca luz, visando vencer pelo cansaço. Ou talvez nem haja nenhuma luta a vencer, já que os fabricantes são fartamente representados nos tais comitês.
Todos os trabalhos juram seguir as famosas boas práticas de laboratório, embora os testes envolvam grupos de apenas três a cinco animais experimentais para cada tratamento. Para ter certeza, você teria que ter acesso aos estudos e seus dados brutos. Tente! Não conseguirá, uma vez que estão protegidos pelo manto do segredo industrial.
Mas o pior ainda está por vir. Em suas conclusões, o documento base adverte: “As autoridades nacionais devem ter ciência de que este documento se refere apenas ao ingrediente ativo e não considera os aditivos em diferentes formulações” (tradução livre).
Responsabilidade local
No item anterior, “Aspectos práticos”, o documento diz que, para uso em controle de vetores, devem usar-se apenas formulações aprovadas para tal fim por autoridades nacionais, levando em conta os ingredientes usados na preparação do produto final.
Você viu algo sobre isto no site do MS ou da Anvisa? Eu também não. Mas, se o MS quisesse mesmo testar o produto final, teria que começar sabendo o que ele contém. E isso não é tarefa fácil. Depois de muitas horas sentado procurando, tudo o que consegui foi a tabela abaixo, retirada da página de uma empresa australiana de controle de pragas:
Quais seriam os tais outros ingredientes? Como se sabe que eles não são perigosos? Por que a Sumitomo Chemical só testou o ingrediente ativo e não a fórmula efetivamente comercializada e aplicada? Por que a OMS aceita esta prática, para o Sumilarv, o Roundup e dezenas de outros produtos? São boas perguntas, para as quais não há resposta nos sites dessas entidades, nem nos documentos ali disponíveis.
Em resumo, uma dúzia de obscuros funcionários de uma indústria produzem relatórios obscuros atestando a inocuidade do principio ativo do novo produto da mesma indústria, e estes relatórios serão avaliados por especialistas gentilmente indicados pelo fabricante e avalizados pela OMS. As autoridades nacionais engolem o aval da OMS, aplicam um coquetel contendo o principio ativo e não podem testar a formulação aplicada de fato, pois sua composição não é revelada, tornando impossível atender à recomendação expressa da OMS.
Está tudo tranquilo e favorável, menos para a ciência e a saúde publica. Mas… WHO cares?
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro