Um diálogo problemático

Não deve ser fácil explicar como funciona um transistor, um antibiótico ou um aparelho de raios X. Seja como for, usufruímos dos três sem fazer muitas perguntas, satisfeitos com o fato de eles simplesmente funcionarem – ou quase sempre. Essas são tecnologias familiares, fazem parte de nosso dia a dia e, embora haja riscos associados a sua fabricação e uso, não os percebemos ou os ignoramos, porque consciente ou inconscientemente avaliamos que seus benefícios superam os riscos.

Avaliamos facilmente os benefícios imediatos que uma tecnologia nos traz, mas dependemos de terceiros para avaliar seus riscos

Temos dificuldade em avaliar os riscos de uma tecnologia porque normalmente temos contato apenas com seu produto final. Devido à globalização, o design e a fabricação de qualquer bem estão hoje dispersos por vários países. Esses processos envolvem pessoas e locais que jamais conheceremos e técnicas que ninguém pode dominar em seu conjunto, porque são numerosas e complexas demais. Portanto, avaliamos facilmente os benefícios imediatos que uma tecnologia nos traz, mas dependemos de terceiros para avaliar seus riscos globais e aqueles que nós próprios corremos, em longo prazo, por utilizá-la.

O problema é que esses tais terceiros não sabem tudo, não contam tudo o que sabem e ainda mudam de opinião com certa frequência. Opinião?! Como assim, se os números não mentem e a ciência é neutra, universal, objetiva e, portanto, confiável?

Bem, se você acredita nisso, provavelmente não é cientista, nem jornalista, ou ainda não viveu o suficiente. De fato, os terceiros que mencionei acima são principalmente os cientistas e os jornalistas. Simplificando – e, portanto, já deturpando: os cientistas são movidos pela ignorância e tentam produzir certezas; os jornalistas movem-se dentro da complexidade e tentam produzir simplicidade. Em uma cultura maniqueísta e que supervaloriza o sucesso, o superlativo, a dominância e a liderança, reconhecer a incerteza e a dúvida, definitivamente, não é sexy.

Cá entre nós, no fundo não queremos que os tais terceiros nos contem tudo. Há coisas que nunca entenderíamos mesmo e outras que entenderíamos perfeitamente, mas preferimos não saber. Sabia que seu smartphone não existiria sem o trabalho escravo infantil em minas de tântalo no Gabão? É a pura verdade – e, por isso mesmo, essa seria uma péssima cantada na dona do aparelho.

Ciência e mídia em Fukushima

Parece que a ciência, a mídia e a população em geral sempre terão relações conturbadas. E um evento grave e recente como o do acidente nuclear em Fukushima, no Japão, é cenário perfeito para evidenciar as contradições desse triângulo nem tão amoroso assim, que tem ainda outros atores de peso, como os interesses corporativos e as administrações públicas.

Usina nuclear de Fukushima
Silêncio e contradições rondam o acidente nuclear de Fukushima, que foi recentemente alçado ao nível sete de gravidade. (foto: Flickr/ daveeza – CC BY-SA 2.0)

Acidentes nucleares dessa magnitude são felizmente muito raros e, portanto, sempre nos pegam desprevenidos, como qualquer evento que tenha baixa probabilidade e alto risco.

Mas os acidentes nucleares têm agravantes peculiares, como o fato de envolverem um agente que não tem cor nem cheiro, é imperceptível – mesmo em altas doses – e pode agir à distância e afetar não apenas vítimas de hoje, mas também seus descendentes. Esse agente pode ser natural ou artificial, provocar câncer ou curá-lo, gerar eletricidade sem emissão direta de carbono por décadas e, de uma hora para outra, transformar-se em um monstro incontrolável.

Um acidente como o de Fukushima, recentemente promovido ao nível setede gravidade, tem amplas e graves consequências ambientais, sociais e morais

Um acidente como o de Fukushima, recentemente promovido ao nível sete de gravidade, tem amplas e graves consequências ambientais, sociais e também morais. Expõe o fato de que foi feita, e perdida, uma aposta. De que superestimamos o que sabemos e subestimamos o que ignoramos. E pior: que os que sabem alguma coisa não estão nos contando quase nada.

Vemos com nossos próprios olhos, graças à vasta divulgação de imagens, que, em uma das maiores economias do mundo, os técnicos envolvidos nos trabalhos de emergência no complexo de Fukushima não têm sequer trajes impermeáveis para se aventurar em poças de água altamente radioativa sem sofrer contaminação.

Não sei você, mas eu me senti traído, diminuído, humilhado enquanto cidadão e membro de uma espécie. Há cerca de 40 anos fomos à Lua e voltamos só para provar que podíamos e hoje não há macacões adequados em Fukushima, nem mesmo para trabalhar a temperatura e pressão terrestres. Onde erramos?

Longe de mim a tentação de tirar conclusões sozinho sobre questão tão profunda. Deixo na superfície uma hipótese: não somos seres racionais e temos pouco ou nenhum controle sobre o mundo que nos cerca. Isso pode até não ser verdade. Fukushima seria então a exceção que confirma a regra. Mas está difícil arrumar provas experimentais em contrário.

Informações desencontradas

Para o cidadão médio, entender o que está ocorrendo em Fukushima a partir da cobertura da mídia é um desafio. Um dia lemos que os técnicos ficaram expostos a uma dose de radiação de 200 milisievert e, no dia seguinte, que a dose seria de 200 milisievert por hora. Lemos também que, no acidente nuclear de Chernobyl, foram emitidos X megabequereis; no dia seguinte, que foi emitida essa mesma quantidade, mas por hora; e, no terceiro dia, que foram no total 5,2 bilhões de terabequereis.

Para o cidadão médio, entender o que está ocorrendo em Fukushima a partir da cobertura da mídia é um desafio

Sievert, Bequerel, muito prazer. Qual dos dois é pior? São diferentes, na verdade. O primeiro é unidade de dose, que é uma medida de risco; o segundo é unidade de atividade, ou o número de átomos radioativos que se desintegram por unidade de tempo.

A atividade pode ser altíssima e a dose, zero, se o radioisótopo for emissor de partículas alfa, muito pouco penetrantes, e não tiver contato direto com nosso corpo. Na mesma situação de alta atividade, um emissor gama gera uma dose elevada por irradiação externa, assim como um emissor alfa que tenha sido inalado ou ingerido, produzindo irradiação interna. Contaminação irradia, mas irradiação não contamina.

Alfa, beta, gama, elétrons, ionização, terabequereis, silêncio e contradições: tudo isso – e mais alguma coisa – está presente em Fukushima.

No acidente com césio-137 em Goiânia, em 1987, havia os mesmos ingredientes, com exceção de emissores alfa.

Césio
Ampola contendo césio, metal que dá origem ao césio-137, elemento radioativo responsável pela contaminação em Goiânia em 1987. (foto: Dennis s.k/ CC BY-SA 3.0)

Diante dos mistérios insondáveis da contaminação que irradia e da irradiação que não contamina, os goianos cunharam na época uma expressão amalgamadora e, de certa forma, definitiva: “Fulano está radiado”, ou seja, foi irradiado (condenado, amaldiçoado) e/ou contaminado (condenado que pode transmitir a maldição) e, portanto, deve ser riscado do convívio social. E assim foi em Goiânia, e será para boa parte da população em torno de Fukushima, por mais injusto que seja.

Viver é mesmo perigoso. Podiam nos explicar melhor o quanto

Sabemos calcular o risco associado ao consumo de 50 gramas diários de espinafre com 500 bequereis de iodo-131 ou césio-137 por quilo, e avaliar quanto custa um enfarte ou um câncer. Mas não sabemos dizer a quantos bequereis equivaleria a perda de seu círculo familiar e social. Calma! Perder um(a) namorado(a) equivale –hipoteticamente – a apenas cinco tomografias, ou a ter 60 anos durante um dia, ou ser alpinista durante meia hora, ou ser homem, afrodescendente e com idade entre 18 e 25 anos em uma cidade brasileira por 2 minutos.

Ué, mas então tomografia usa radiação e tem risco?

Viver é mesmo perigoso. Podiam nos explicar melhor o quanto.

Mas queremos mesmo saber?

Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro