Um fóssil espetacular

Parece que, em termos de descobertas paleontológicas, o final de 2014 é mesmo dos mamíferos. Não só achados recentes de formas jurássicas na China surpreenderam os cientistas, mas também a descoberta de uma nova espécie de cinodonte no Rio Grande do Sul (veja abaixo, nas Paleocurtas), trouxeram várias novas informações a respeito da evolução dos mamíferos.

A essas descobertas junta-se um fóssil espetacular procedente de Madagascar, tema central desta coluna. A nova espécie, denominada Vintana sertichi, pertence a um dos mais enigmáticos grupos de mamíferos extintos descoberto até agora: os Gondwanatheria.

O achado de David Krause, da Stony Brook University, de Nova York, nos Estados Unidos, e colegas foi publicado com destaque na revista Nature e, em seguida, foi tema de uma grande monografia no Journal of Vertebrate Paleontology.

Os gondwanatérios são formas raras que viveram no supercontinente Gondwana, que outrora reunia todas as massas continentais ao sul da linha do Equador, mais o território da Índia. Restos desses mamíferos foram encontrados na Argentina, Índia, África e península Antártica, em depósitos cuja idade varia de 110 milhões de anos a 56 milhões de anos atrás.

Supercontinentes
Foi no supercontinente Gondwana, que reunia as massas continentais ao sul do Equador, mais a Índia, que surgiram formas raras como os gondwanatérios, a que pertence ‘V. sertichi’. (imagem: LennyWikidata/ Wikimedia Commons – CC BY 3.0)

Infelizmente, as sete espécies que puderam ser comprovadamente classificadas nesse grupo são conhecidas, em sua maioria, por restos de dentes isolados e algumas poucas arcadas inferiores. Entre as principais características do grupo estão os molares com coroas muito altas, o que levou os pesquisadores a sugerir que eram onívoros ou herbívoros.

Devido à escassez de material, não se tinha uma noção exata da classificação dos gondwanatérios na história evolutiva dos mamíferos. Mas o novo crânio – o primeiro de uma espécie que pode ser atribuída ao grupo – muda tudo.

Um golpe de sorte

Vintana, nome derivado da palavra malgaxe que significa sorte, foi encontrado em rochas formadas entre 72 e 66 milhões de anos atrás, uma faixa de tempo que forma o topo do Cretáceo e é denominada de Maastrichtiano.

O achado foi feito por Joseph Sertich, a quem a espécie foi dedicada (Vintana sertichi), em rochas que pertencem à Formação Maevarano. Essas rochas são velhas conhecidas dos paleontólogos, já que forneceram vários dinossauros (inclusive aves) interessantes, como também restos de crocodilomorfos, um sapo gigante, peixes, tartarugas e cobras.

Segundo David Krause e colegas, o crânio de Vintana era grande para um mamífero daquele tempo: aproximadamente 125 milímetros, pouco menor que uma caneta Bic. Estimativas sugerem que o animal chegava a pesar perto de 9 quilos, o que o torna o segundo maior mamífero da Era Mesozoica, sendo ultrapassado apenas pela forma carnívora Repenomamus, da China, que, diga-se de passagem, se alimentava também de dinossauros.

Vintana sertichi
Imagem do crânio de ‘V. sertichi’ produzida por tomografia computadorizada; ao lado, reconstrução da nova espécie em vida. O crânio do animal é considerado grande para um mamífero de sua época. (imagem: Krause et al./ Nature)

Além de ter as coroas dos molares bastante desenvolvidas, característica que possibilitou classificar a nova espécie nos Gondwanatheria, Vintana possuía dois grandes incisivos na parte anterior do crânio, que possivelmente cresciam de forma contínua. Estes eram separados de um pequeno dente pré-molariforme e de quatro dentes molariformes por um grande espaço (diastema). Não possuía caninos, ao contrário das espécies carnívoras.

Entre as diversas características do novo mamífero malgaxe, um osso na parte lateral do crânio (denominado jugal) era muito desenvolvido, indicando que o animal tinha uma musculatura para mastigação possante. Como não se conhecem outros crânios de gondwanatérios, não se sabe se essa era uma característica única de Vintana ou uma característica compartilhada pelos demais membros do grupo.

O animal tinha um cérebro relativamente pequeno e similar a algumas formas de espécies que antecederam o surgimento dos mamíferos

Muitas outras feições cranianas surpreenderam os pesquisadores. A cabeça de Vintana é relativamente curta e alta, e foram encontrados ossos na cabeça que normalmente estão ausentes nos demais mamíferos, como o tabular e o pós-parietal. A presença desses ossos na nova espécie, que se perderam ao longo da história evolutiva dos mamíferos, é algo totalmente intrigante para os paleontólogos, cuja explicação requer mais estudos.

Usando tomografia computadorizada, David Krause e colegas puderam estudar a cavidade cerebral de Vintana. Descobriram que o animal tinha um cérebro relativamente pequeno e similar a algumas formas de espécies que antecederam o surgimento dos mamíferos (espécies designadas mamaliformes basais).

As órbitas são bastante desenvolvidas, sugerindo a existência de olhos grandes. Como os bulbos olfatórios, região do cérebro responsável por captar cheiros, também eram bastante desenvolvidos, tudo indica que o olfato de Vintana era bem apurado. Características da região auditiva sugerem que esse mamífero era bastante ágil e rápido, e análise detalhada do desgaste dos dentes indica que se alimentava de material resistente, como sementes, frutificações e raízes.

Isolamento geográfico

No trabalho, David Krause e colaboradores tentaram estabelecer os motivos pelos quais Vintana seria tão distinto dos demais mamíferos. Eles acreditam que isso talvez decorra do intenso isolamento geográfico, que, no caso de Madagascar, foi de aproximadamente 16 a 22 milhões de anos.

Madagascar
Maciços de pedra em planície do lado ocidental de Madagascar. O isolamento geográfico dessa ilha do oceano Índico talvez explique por que ‘V. sertichi’ seria tão distinto dos demais mamíferos. (foto: Wikimedia Commons/ Moongateclimber – CC BY-SA 3.0)

Outros achados nas mesmas camadas onde a nova espécie foi encontrada corroboram essa hipótese, já que alguns elementos da fauna reptiliana descoberta até agora também diferem bastante dos demais.

A descoberta do crânio de Vintana também possibilitou melhor análise da relação de parentesco dos Gondwanatheria. Tudo indica que esses animais estariam proximamente relacionados com os multituberculados e haramiyidos, outros grupos de mamíferos extintos.

Como podemos novamente enfatizar, a paleontologia não se dedica apenas à pesquisa dos dinossauros. Outros tantos grupos pelo menos tão fascinantes quanto esses répteis têm sido descobertos, para felicidade geral dos que se interessam por esse maravilhoso mundo – ou mundos – que a pesquisa paleontológica descerra para todos nós.

Alexander Kellner
Museu Nacional/UFRJ
Academia Brasileira de Ciências

Paleocurtas

As últimas do mundo da paleontologia
(clique nos links sublinhados para mais detalhes)

Marina Soares (UFRGS) e colegas acabam de publicar nos Anais da Academia Brasileira de Ciências um novo achado de cinodonte procedente de depósitos triássicos do Rio Grande do Sul. Baseado em uma arcada inferior, Botucaraitherium belarminoi aumenta a diversidade de cinodontes de pequeno porte, que estão na origem dos mamíferos.

 

Mario Dantas (UFBA) e colegas acabam de divulgar, no periódico Quaternary International, novo estudo sobre a interação entre hominídeos e megafauna. Os autores estabeleceram a idade de um dente de preguiça-gigante com marcas realizadas por hominídeos como sendo de aproximadamente 12.500 anos, corroborando a ideia de que a ocupação humana na América do Sul se deu antes do que foi estabelecido por pesquisas anteriores.

 

Ainda sobre mamíferos: a revista Comptes Rendus Palevol publicou pesquisa coordenada por Cástor Cartelle (PUC Minas) que procura discutir quantas espécies de preguiça-gigante viveram em depósitos brasileiros durante o Pleistoceno Superior. Questionando estudos anteriores, os autores defendem a existência de uma única espécie, denominada Eremotherium laurillardi.

 

Estudo publicado na Cretaceous Research descreve uma rara assembleia de bivalves de mar profundo encontrada nos depósitos da Formação Puez, no norte da Itália. Simon Schneider (CASP, Cambridge, Inglaterra) e colegas estudaram bivalves coletados de forma sistemática por mais de uma década, o que resultou em mais de 50 exemplares, incluindo duas espécies novas.

Miguel Moreno-Azanza (Universidad de Zaragoza, Espanha) e colegas encontraram cascas de ovos atribuídos a dinossauros terópodes em depósitos do Cretáceo Inferior da região norte da Espanha. Os autores aumentaram a diversidade dessa microestrutura, encontrada em ovos de dinossauros carnívoros, uma vez que elas são bem diferentes do que já se conhecia até então. O trabalho saiu na Acta Palaeontologica Polonica.

George Poinar Jr. (Oregon State University, Estados Unidos) publicou na Historical Biology descrição de um novo besouro fóssil procedente dos famosos depósitos de âmbar situados na região norte da República Dominicana. Embora a idade do âmbar ainda seja objeto de controvérsia, variando de 45 milhões de anos a 15 milhões de anos, a nova descoberta aumenta a diversidade dos insetos fósseis encontrados no que restou de uma extensa floresta que outrora existia naquele país.