As pessoas que sofreram amputação de uma parte do corpo sabem perfeitamente que não é alucinação ou mentira: elas têm de fato diversas sensações nessa parte ausente. Alguém que perdeu um braço, por exemplo, pode sentir dor nele ou ter a sensação precisa de que moveu os dedos ausentes para realizar uma tarefa qualquer.
Geralmente essas sensações desagradáveis são provocadas por movimentos imaginários, inteiramente anômalos e forçados, como se as articulações se movessem no sentido antinatural, provocando dor. Essas estranhas percepções de regiões do corpo que não existem mais são conhecidas há muito pela humanidade, e chamadas atualmente síndrome do membro fantasma.
A síndrome ocorre em cerca de 85% dos amputados, e suas manifestações podem variar desde um calor prazeroso até uma intensa coceira que não tem solução… porque não há o que coçar. Os neurocientistas já têm uma explicação parcial para o fenômeno, embora seu mecanismo preciso ainda não seja conhecido. Pior: os médicos não têm como tratá-lo, embora mais de 60 estratégias clínicas, cirúrgicas, psicológicas e alternativas já tenham sido propostas.
Quem são os fantasmas?
O cérebro é feito de mapas – do corpo, do mundo externo, dos sons do ambiente. Nos amputados, o mapa fica incompleto, mas os espaços “vazios” são logo preenchidos pelas regiões adjacentes .
Grande contribuição à compreensão da síndrome do membro fantasma foi dada pelo pesquisador indo-americano Vilayanur Ramachandran, autor de inúmeros trabalhos sobre o tema. Ramachandran e seus colaboradores investigaram o cérebro dos amputados utilizando técnicas de neuroimagem funcional, capazes de identificar as áreas cerebrais ativas quando as diversas partes do corpo são estimuladas.
Ao tocar levemente o coto ou regiões corporais adjacentes, em pessoas que perderam um dos braços, o grupo descobriu que as áreas cerebrais ativadas eram as que anteriormente representavam o braço ausente. Isso significa, primeiro, que a amputação não fez desaparecer as áreas cerebrais correspondentes; e, segundo, que essas áreas passaram a receber informação de outras partes do corpo.
A questão é que o cérebro do indivíduo aprendeu durante muitos anos de sua vida, antes da amputação, que a ativação daquela região específica devia ser interpretada como “braço”. Por isso, estímulos incidentes no coto, no ombro ou mesmo no queixo – um simples movimento involuntário, ou a passagem suave do vento – são percebidos como algo sentido no membro ausente.
Até aí tudo bem. Mas o que de fato acontece no cérebro dos amputados? Será que as fibras nervosas que transmitem a informação das regiões adjacentes se deslocam e “invadem” a área cerebral que ficou sem função? Ou será que já havia anteriormente conexões “silenciosas” ligando no cérebro as diferentes regiões corporais, e essas conexões tornaram-se funcionais com a amputação? Essa é uma parte da história que ainda permanece misteriosa.
Como se livrar dos fantasmas?
A outra parte não resolvida é que não se consegue tratar as percepções fantasmas. Tentou-se de tudo: acupuntura, emprego de analgésicos e anestésicos locais no coto, psicoterapia, cirurgia para a remoção das extremidades dos nervos do coto, transformadas às vezes em pequenos tumores, medicamentos de ação central no cérebro, estimulação elétrica ou magnética do cérebro. Nada deu certo.
Os amputados posicionavam-se na caixa de espelho de tal modo que visualizavam a imagem de sua perna remanescente (no caso, a esquerda), como se fosse a perna amputada. Os experimentos solicitavam que mentalizassem movimentos da perna amputada de modo a imitar os movimentos feitos com a perna existente. Reproduzido de Brodie et al. (2007).
Foi quando Ramachandran, em 2000, propôs um tratamento engenhoso que acendeu as esperanças para os amputados. Ele pensou o seguinte: se o cérebro interpreta como braço a ativação da região cerebral correspondente porque aprendeu assim durante toda a vida, por que não tentar reeducá-lo, para que “se convença” de que aquela parte do corpo não existe mais?
O aparato proposto para “reeducar” o cérebro foi uma simples caixa com um espelho, defronte ao qual o indivíduo realizava uma série de movimentos com o braço remanescente. Este era visto ao espelho como se fosse o braço ausente, pretendendo-se com isso que o cérebro imitasse mentalmente, para o braço amputado, os movimentos feitos para o braço existente.
Ramachandran relatou algum sucesso com essa terapia, mas um estudo mais controlado feito recentemente pelo pesquisador Eric Brodie, do Departamento de Psicologia da Universidade Caledônia de Glasgow, na Escócia, trouxe mais dúvidas do que certezas.
Brodie e seus colaboradores reuniram 80 amputados do membro inferior, de ambos os sexos e diferentes idades, e os submeteram a um aparato com espelho à maneira de Ramachandran (ver figura acima). Cada amputado realizava 10 movimentos reais com o membro existente, repetidos 10 vezes, e ao mesmo tempo 10 movimentos imaginários com o membro ausente, também repetidos 10 vezes. Depois respondiam a questionários para avaliar se suas sensações fantasmas haviam se modificado.
Em um aspecto, os resultados foram negativos. Os participantes, em conjunto, relataram diminuição nas sensações fantasmas, inclusive a dor. Só que o grau de melhora relatado não foi diferente do que indicaram os experimentos de controle, nos quais os amputados posicionavam-se na caixa, mas sem o espelho. Um efeito placebo, provavelmente. O lado positivo foi que os amputados testados no espelho tiveram maior número de sensações de movimentos realizados pelo membro ausente (movimentos fantasmas) em relação aos controles.
Os pesquisadores foram otimistas em sua interpretação geral dos dados do experimento. E se as sensações de movimento pudessem ser provocadas pelo pensamento dos amputados? Nesse caso, melhoras talvez pudessem ser obtidas se os amputados fossem educados a imaginar movimentos fantasmas com o membro ausente. Uma terapia diferente, baseada na imaginação!
Terapia posta em prática
Uma considerável redução da dor fantasma crônica foi obtida pela terapia de imaginação de movimentos. Modificado de McIver et al. (2008).
A idéia foi imediatamente executada por outro grupo britânico, no Instituto de Pesquisas sobre Dor, de Liverpool. O grupo, liderado por Kate McIver, mobilizou 13 amputados de membro superior com fortes dores fantasmas, treinando-os durante seis semanas a imaginar movimentos com o braço ausente.
Antes do treinamento, eles haviam verificado por neuroimagem que a representação dos lábios havia invadido o território cortical que devia representar o braço amputado, como já se sabia. Após o treinamento, os pacientes relataram uma diminuição significativa da intensidade da dor fantasma, e a imagem cerebral revelou a redução da “invasão” pela representação dos lábios.
Esses trabalhos têm, é claro, um significado prático relevante para o tratamento das sensações fantasmas que acometem os amputados. Mas têm também um significado mais conceitual, relacionado aos “poderes da mente”. A maioria dos neurocientistas acredita que o cérebro determina a mente – a famosa visão monista de tradição materialista.
Mas os experimentos com as terapias imagéticas recolocam em pauta o outro lado dessa questão: a mente pode também “determinar” o cérebro, no sentido de que o pensamento, a imaginação e o exercício mental são capazes de fisicamente modificar os circuitos neurais e a representação das funções no cérebro.
A natureza nos surpreende, mais uma vez.
SUGESTÕES PARA LEITURA
Ramachandran, V.S. e Rogers-Ramachandran, D. (2000) Phantom limbs and neural plasticity. Archives of Neurology 57:317-320.
Ramachandran, V.S. e Blakeslee, S. (2002) Fantasmas no cérebro (trad. de A. Machado). Editora Record, Rio de Janeiro.
Brodie, E.E. e colaboradores (2007) Analgesia through the looking-glass? A randomized controlled trial investigating the effect of viewing a “virtual” limb upon phantom limb pain, sensation and movement. European Journal of Pain, vol. 11: pp. 428-436.
McIver, K. e colaboradores (2008) Phantom limb pain, cortical reorganization, and the therapeutic effect of mental imagery. Brain 131:2181-2191.
Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
29/08/2008