Um pouco de biomecânica molecular

Recentemente,  a revista Physics World publicou um artigo do repórter James Dacey intitulado “Física fundamental entra na guerra do câncer”. O texto apresenta um programa de pesquisa norte-americano financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês), com um orçamento estimado em 200 milhões de reais para ser aplicado em cinco anos. Essa verba será dividida entre 12 instituições com o objetivo de desenvolver abordagens não tradicionais no estudo do câncer.

Um tópico especial da proposta é a investigação das propriedades físicas e a dinâmica de células cancerosas. Respeitáveis instituições participam da iniciativa: as universidades de Cornell, do Sul da Califórnia, Johns Hopkins, Northwestern, Princeton, Berkeley, o Instituto de Pesquisa do Câncer H. Lee Moffitt, o Memorial Sloan-Kettering, o Instituto de Pesquisa Scripps e o Centro de Ciências da Saúde do Texas.

O estudo vai investigar as propriedades físicas e a dinâmica de células cancerosas

Ao me inteirar do assunto, fui surpreendido pela existência de uma interessante área de pesquisa interdisciplinar, cujo espaço deverá, cada vez mais, ser compartilhado por biólogos, engenheiros, físicos, matemáticos, médicos e químicos.

O uso de métodos oriundos da física e da ciência dos materiais no diagnóstico e cura do câncer não é novo. Aqui mesmo nesta coluna já tratamos disso em outras ocasiões (em novembro/2007, dezembro/2007 e dezembro/2008). Mas, o projeto financiado pelo NIH quer ir além dos métodos hoje conhecidos: eles estão em busca de algo realmente inovador, de uma mudança paradigmática.

É interessante observar que a mudança de paradigma está surgindo em uma área que em determinados aspectos tem mais de dois séculos de existência. Por exemplo, a transição sol-gel em células ameboides –  tema que tem despertado grande interesse nas duas últimas décadas – é conhecida desde o século 18. Nos modelos clássicos do citoplasma, a parte interna encontra-se no estado mais fluido, denominado sol, enquanto a parte mais externa tem uma consistência mais viscosa, similar a uma gelatina – por isso denominada gel. A transição de uma fase para a outra tem sido objeto de inúmeros estudos científicos.

Além disso, nos anos 1920, partículas magnéticas microscópicas foram usadas em células vivas para o estudo de viscoelasticidade. Em 1972, a Annual Review of Biophysics and Bioengineering publicou um artigo de revisão sobre o mecanismo molecular da contração muscular. A retomada atual desses temas e de estudos correlatos configura uma mudança de paradigma simplesmente pelas possibilidades abertas com a nanotecnologia.

Impulso mecânico e reação bioquímica

Para alguns pesquisadores, o objetivo básico da biomecânica molecular é a compreensão do mecanismo pelo qual uma célula viva sente uma força sobre ela e a forma como ela transforma esse impulso mecânico em reações bioquímicas e comportamentos fisiológicos. Eles estão convencidos de que esses processos estão na base de todo o comportamento dos seres vivos, incluindo aí o surgimento e a cura das enfermidades. Não é por acaso que os urologistas têm tanta confiança no exame de toque da próstata: a elasticidade da mesma é um bom indicativo de células saudáveis.

A grande quantidade de resultados empíricos – em ambiente clínico e experimental – permite aos médicos de hoje a proposição de alguns modelos de comportamento das células vivas. Um desses modelos, proposto por Donald E. Ingber para a célula eucariótica, é inspirado nas estruturas criadas pelo arquiteto Richard Buckminster Fuller.

Esse modelo recebeu o mesmo nome do modelo original – tensegrity, contração da expressão inglesa tensional integrity, ou seja integridade tensional (na literatura em português, está em uso a denominação tensegridade). As estruturas que têm essa propriedade também são conhecidas entre os engenheiros pelo nome de treliças. Essas estruturas sobrevivem graças ao equilíbrio entre tração e compressão nos seus diversos pontos de articulação. Elas podem ser construídas com barras e cordas ou unicamente com molas, desde que apresentem diferentes propriedades elásticas.

Tensegridade
Estruturas como a da foto acima são dotadas de tensegridade, ou seja, apresentam equilíbrio entre tração e compressão nos seus diversos pontos de articulação. De acordo com um novo modelo, a complexa estrutura molecular das células humanas se assemelha a essas estruturas (arte: Bob Burkhardt).

Ao contrário do que se imaginava há um século, as células eucarióticas não são constituídas de protoplasma, uma espécie de geleia responsável pela forma e pelas reações celulares. Essas células contêm uma complexa estrutura molecular, uma espécie de esqueleto, denominado citoesqueleto, constituído de fibras proteicas, entre as quais se destacam os microfilamentos, os microtúbulos e os filamentos intermediários.

As células têm uma complexa estrutura molecular formada por fibras proteicas

Para Ingber, esses componentes estão interligados em uma estrutura de treliças como aquela proposta por Fuller. Cada componente apresenta propriedades mecânicas características. Por exemplo, em estudos de laboratório com elementos isolados, os microfilamentos resistem melhor à tração do que os microtúbulos, enquando estes são mais resistentes à compressão do que aqueles. Para validar esse modelo, porém, serão necessários resultados suficientemente convincentes em relação a alguns comportamentos básicos das células vivas.

Em primeiro lugar, deve ficar evidente que as células se comportam como um conjunto discreto de componentes, e não como um meio viscoso e contínuo. Em segundo lugar, é preciso demonstrar que a deformalidade celular se deve essencialmente às tensões e compressões existentes no citoesqueleto. Finalmente, as tensões no citoesqueleto, presumivelmente concentradas nos filamentos, devem ser contrabalançadas pelos microtúbulos, nos quais parece evidente a existência de forças de tração.

Micropartículas magnéticas

Graças à nanotecnologia estão disponíveis técnicas para examinar esses comportamentos. É possível, por exemplo, agregar micropartículas magnéticas aos receptores que fazem a ponte entre as células e o meio extracelular. Assim, um campo magnético externo pode ser usado para aplicar uma torção a um determinado ponto da superfície celular. A célula responde a esse estímulo de um modo consistente com a estrutura discreta proposta por Ingber. Uma confirmação extraordinária foi obtida quando os filamentos e os microtúbulos foram voluntariamente rompidos. A célula simplesmente deixou de responder aos estímulos.

Diversos resultados experimentais têm demonstrado claramente que, seja qual for o modelo molecular, uma força mecânica aplicada em diferentes tipos de células biológicas produz não apenas alterações na morfologia, como também na expressão gênica e na produção de proteínas. É com esse foco que os pesquisadores financiados pelos NIH deverão encarar o câncer.

A ideia é pensar na célula tumoral como um objeto físico, com propriedades conhecidas

Em vez de simplesmente seguir a ortodoxia, na qual produtos farmacológicos são usados para enfrentar o tumor, a ideia é pensar na célula cancerosa como um objeto físico, com propriedades bem conhecidas, como elasticidade, forças de adesão, potencial elétrico, entre outras.

Isso não significa o abandono dos estudos centrados nas propriedades genéticas, nem da abordagem química. Ao contrário, o que se pretende é integrar as três abordagens na busca de uma medicina holística. Um empreendimento que, segundo Hossam Haick, pesquisador do Instituto Israelense de Tecnologia, exigirá olhos de físico, mãos de químico e percepção de biólogo.

Carlos Alberto dos Santos
Colunista da CH On-line
Professor aposentado pelo Instituto de Física
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul