A morte e a doença são certamente focos de máxima atenção em todas as culturas, posto que são os limites últimos ou ameaçadores da condição vital corrente, cotidiana. A categoria doença não recobre, porém, um campo uniforme e isolado de fenômenos, nem sequer em nossa cultura.
Para nós, atualmente, ela tende a se concentrar no interior de um campo de saberes e crenças muito bem estruturado, conhecido e onipresente: o da medicina ocidental – também chamado de “biomedicina”, para diferenciar de outros grandes sistemas médicos, como o chinês, o ayurvédico, o humoral ou o homeopático.
A antropologia dedica-se tradicionalmente à exploração dessa dimensão fundamental da experiência humana, organizada em correntes tais como ‘antropologia médica’, ‘antropologia da saúde’, etnopsiquiatria, dentre outras.
Existe aí um enorme leque de fenômenos e questões, desde as doenças, síndromes e condições semelhantes imediata e universalmente reconhecidas como tais pela biomedicina até a área mais controvertida dos ‘distúrbios mentais’ e da psicossomática.
A antropologia busca compreender nesse mesmo âmbito áreas de perturbação e terapêutica excluídas da lógica científica dominante, mas que continuam integradas na experiência social concreta: os estados alterados de consciência, os recursos religiosos, a ampla franja de saberes e práticas que podem ser chamados de “alternativos”, “complementares” ou “holísticos”.
A própria constituição e organização da biomedicina é objeto de observação e análise. Embora se desenvolva no âmbito da racionalidade científica oficial do Ocidente, ela opera como qualquer outra instituição social, articulada com a cultura que a ensejou e que lhe fornece os instrumentos de difusão semântica.
A antropologia age aí em estreito diálogo com a história social da medicina e com diversos focos da filosofia ocidental, comprometidos com a compreensão da racionalidade moderna – em que avulta a contribuição exemplar do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984).
Intensa penetração social
Em meio ao vasto grupo de seres engendrados pela biomedicina, tais como vírus, exames, bulas, proteínas, receitas, atestados, dietas, horários, vitaminas, protocolos, procedimentos, laudos (e, hoje em dia, também processos judiciais), destacam-se certamente os medicamentos.
São objeto de considerável atenção da antropologia, tendo sido o foco de um dos grupos de trabalho da recente IX Reunião de Antropologia do Mercosul, ocorrida em Curitiba em meados de julho. Mais de 20 comunicações de pesquisa animaram as discussões, das quais participei pessoalmente.
Os assuntos abordados foram dos mais diversos: reprodução assistida, metilfenidato, diabetes, esteroides anabolizantes, psicotrópicos, pró-sexuais, homeopatia, tratamento anti-HIV. Em todos os casos tentou-se acompanhar a lógica da experiência coletiva dos fármacos – sua vida social.
O neologismo medicamentalização busca traduzir a intensidade da penetração dos medicamentos em todos os segmentos e dimensões da vida social, carregando consigo (ou não) os pressupostos cosmológicos da cientificidade médica.
Uma parte das comunicações lidava com aspectos da condição humana em que o desempenho individual estava em jogo; não propriamente o desempenho regular de alguma das funções corporais, eventualmente ameaçado por alguma doença, mas as condições de um desempenho ótimo, elevado a sua máxima potência.
A medicação é, nesses casos, desejada como um recurso de aperfeiçoamento da experiência humana, na trilha dos anseios de ‘perfectibilidade’ que balizam o sentido da cultura ocidental desde o iluminismo. Nessa linha, os estudos sobre as drogas pró-sexuais e sobre os esteroides anabolizantes androgênicos são os mais evidentes, mas há também os que apresentam as condições de uso do metilfenidato e de outros recursos.
Na área das perturbações psicológicas, a fronteira entre um uso terapêutico e um uso propiciatório é praticamente inexistente, dada a íntima continuidade entre as condições subjetivas de afirmação de si e de sofrimento.
Necessidade terapêutica ou mania de perfeição?
Mas, quando se observa as linhas de frente da pesquisa científica biológica, percebe-se como a ‘perfectibilidade’ se insinua rapidamente no meio da argumentação mais diretamente terapêutica. Isso emerge na genética, nas neurociências ou na endocrinologia e garante a esses saberes a aura redentora de que hoje frequentemente se cercam.
É evidente que tais desenvolvimentos extrapolam com frequência a racionalidade imediata dos agentes, merecendo severas preocupações do sistema biomédico. Os ‘abusos’ dos esteroides anabolizantes são um claro exemplo dessa fronteira entre o desejo de aperfeiçoamento corporal de muitos usuários e a luta por um uso terapêutico propriamente médico.
Na verdade, o conjunto de fármacos que pode ser reapropriado para um consumo cosmético ou orgiástico é muito grande e não cessa de crescer.
Um trabalho me interessou particularmente: o de Leonardo Sousa Malcher, atualmente na Universidade de Montreal. Seu estudo apresenta os fascinantes processos de rejuvenescimento propostos por diferentes médicos no início do século 20, com a utilização de ‘extratos testiculares’ ou de enxertos de partes de testículos de animais (sobretudo macacos).
Pretendia-se assim, com apoio na endocrinologia da época, propiciar a “eterna juventude”, no mais claro império do ideal de perfeição. O próprio autor busca correlações entre o imaginário dessa época e o atual, com os pró-sexuais e os xenotransplantes.
A biomedicina tende a olhar para sua própria história como um progresso linear da racionalidade, de superação contínua do erro pela verdade. No entanto, a observação mais profunda do sentido em que ela se constitui e circula socialmente permite perceber o quão mais complicada é sua ubíqua presença entre nós.
Mas você certamente não esqueceu, caro leitor, de suas pílulas da manhã, não é mesmo? E espero que tenha lido a bula…
Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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