Uma doce batalha entre os sexos

A necessidade de atrair a atenção do sexo oposto molda grande parte de nossas atitudes. Afinal de contas, quem nunca colocou aquela roupa ou perfume especial para se fazer notar?

Essa necessidade não é exclusiva de nossa espécie e é conhecida há bastante tempo, tendo sido inclusive estudada pelo naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882). Darwin propôs uma teoria, denominada seleção sexual, para tentar explicar como certas características animais podem ser modeladas evolutivamente pela competição para atrair o sexo oposto.

Essa competição tem sido tradicionalmente estudada entre os integrantes do sexo masculino, nos quais ela se expressa por meio de uma série de comportamentos e características morfológicas. Entre os exemplos clássicos do “arsenal” empregado pelos machos em suas conquistas sexuais estão ornamentos como jubas, caudas, chifres, caninos proeminentes e colorações extravagantes. Além disso, condutas masculinas como cantos e outras vocalizações, exibições comportamentais e disputas territoriais estão também associadas à atração da atenção de fêmeas.

Pavão
Na competição para atrair o sexo oposto, os machos – como o pavão – dispõem de ornamentos como caudas e cores extravagantes (foto: Peter Andersen).

Indivíduos portadores de características e comportamentos mais exuberantes conseguem obter um maior sucesso reprodutivo, pois se acasalam com mais frequência e produzem uma prole mais numerosa. Contudo, essas características morfológicas e comportamentais podem, muitas vezes, representar riscos para a sobrevivência ou custos energéticos mais elevados para os seus portadores.

Indivíduos com características e comportamentos mais exuberantes conseguem obter maior sucesso reprodutivo

Mas qual é o papel desempenhado pelas fêmeas na atração sexual? Há evidências de que as fêmeas selecionam ativamente seus parceiros sexuais, contudo, ainda não se conhecem as implicações de tais escolhas. Em alguns casos, as fêmeas obtêm benefícios diretos, como alimentação, cuidado paternal e acesso a territórios de melhor qualidade. Porém, em outras situações, quando as fêmeas recebem pouco ou nenhum auxílio dos machos para criar a sua prole ou se proteger, as vantagens obtidas são desconhecidas.

Esses tópicos são de grande interesse para os ecólogos, porém ainda há pouco conhecimento da base genética associada às divergências no comportamento sexual de machos e fêmeas. Apesar de esse enigma ainda estar longe de ser solucionado pela ciência, nos últimos anos os pesquisadores têm procurado respostas nas moléculas diretamente relacionadas com a diferença entre os sexos: os cromossomos sexuais.

Os cromossomos X e Y
Em mamíferos, os machos possuem dois cromossomos sexuais diferentes (XY) e são, portanto, heterogaméticos. O sexo é determinado pelo cromossomo Y, que é herdado exclusivamente da linhagem masculina. Apesar de sua importância, o cromossomo Y representa apenas 0,38% do genoma humano e é assim denominado porque se assemelha a uma letra Y quando analisado sob microscopia. Raciocínio idêntico pode ser feito para o cromossomo X.

Cromossomos sexuais
Cromossomos sexuais X e Y do homem, com a região pseudoautossômica do braço curto das moléculas (PAR1) marcada em verde (foto: Steffen Dietzel).

O cromossomo Y possui duas regiões similares ou homólogas ao cromossomo X que são responsáveis pelo pareamento dessas moléculas durante a divisão celular. Essas regiões, chamadas pseudoautossômicas (PAR1 e PAR2), estão localizadas nas extremidades do braço longo e do braço curto do cromossomo Y.

Contudo, cerca de 95% do cromossomo Y  não se recombinam com o cromossomo X. Essa região, conhecida como NRY (do termo inglês Non-Recombining Region), possui genes em um estado individualizado ou haploide, que, por isso, são transmitidos diretamente entre os pais e seus filhos do sexo masculino.

Por vários anos acreditou-se que o cromossomo Y fosse similar a um “deserto” que conduzia apenas um gene, conhecido como SRY (do termo inglês Sex Determining Region), relacionado com a determinação do sexo. Porém, pesquisas recentes revelaram que o cromossomo Y é bem mais rico: nos homens, por exemplo, ele possui 86 genes – a maior parte presente em NRY –, que codificam 23 proteínas, muitas das quais produzem características distintivas do sexo masculino ou holândricas.

Alguns genes identificados na região NRY estão associados à manutenção da fisiologia celular. Contudo, nessa região existem 10 genes expressos apenas nos testículos e que estão envolvidos com o controle da produção e diferenciação de espermatozoides. Pacientes que têm deleções ou mutações em NRY apresentam um número reduzido ou uma ausência total de espermatozoides em seu sêmen.

Os genes na região NRY são expressos em cópias múltiplas. Esse padrão de ocorrência aumenta a eficiência da espermatogênese e diminui a influência de deleções ou mutações sobre esse processo. Esse tipo de arranjo também permite que esses genes apresentem diferenças em suas sequências e criem combinações de variantes gênicas ou alelos para cada indivíduo. Contudo, não está definido claramente ainda se existe uma relação entre a composição da região NRY e um maior sucesso em termos de seleção sexual.

Os genes presentes em 95% do cromossomo Y influenciam aspectos envolvidos na seleção sexual na vida adulta

Outros genes do cromossomo Y estão associados com o controle do desenvolvimento embrionário, da estatura e do crescimento de dentes. Em várias espécies de mamíferos, embriões XY desenvolvem-se mais rapidamente até a metade da gestação do que embriões XX. Isso se reflete em um número maior de blastômeros e somitos, além de maior peso e tamanho corporal ou da cabeça. Esses processos parecem ser controlados por um único gene, denominado controlador do desenvolvimento do cromossomo Y ou GCY (do termo inglês Growth Control Y).

Os genes presentes em NRY influenciam aspectos envolvidos na seleção sexual na vida adulta. Alguns exemplos são os genes associados a um maior tamanho corporal e ao desenvolvimento de dentes, fatores importantes em processos de disputa territorial e pela atenção de fêmeas. Mas como essas descobertas sobre a biologia do cromossomo Y estão relacionadas à seleção sexual?

Influências sobre a seleção sexual
As características presentes em NRY se comportarão de forma diferenciada em comparação com genes autossômicos (não sexuais). Fatores codificados nos autossomos serão disseminados apenas se forem benéficos para ambos os sexos ou quando os benefícios para um sexo forem maiores do que as desvantagens para o outro.

Cromossomos do homem
A imagem mostra os 23 pares de cromossomos de um homem (foto: National Human Genome Research Institute).

Como não existe recombinação para os genes presentes em NRY, as características por eles codificadas são passadas de forma inalterada entre indivíduos do sexo masculino em um grupo familiar. Genes benéficos para os machos, mas prejudiciais para as fêmeas, irão se acumular no cromossomo Y e serão transmitidos apenas para os filhos e não para as filhas, nas quais eles poderiam ser selecionados negativamente.

Algumas dessas características transmitidas aos machos podem ter, contudo, efeitos negativos sobre as fêmeas, que terão custos fisiológicos e energéticos maiores para cuidar de uma prole com genes associados com maior tamanho corporal e outras características competitivas. Mas esse custo pode ser visto como uma espécie de “investimento” feito pelas fêmeas para as gerações futuras, que assim se tornarão mais fortes e resistentes.

Provavelmente, essas relações entre genes nos cromossomos sexuais e o processo de seleção sexual somente serão mais bem compreendidas à medida que forem realizadas pesquisas capazes de unir a ecologia com aspectos da biologia molecular, no momento algo tão raro quanto estabelecer uma trégua na batalha entre os sexos.

 

Jerry Carvalho Borges
Departamento de Medicina Veterinária
Universidade Federal de Lavras

 

SUGESTÕES PARA LEITURA:
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