Uma flor de 125 milhões de anos

Uma possível cena em Liaoning (China) há 125 milhões de anos: uma planta Archaefructus atrai um inseto, que por sua vez atrai um pterossauro insetívoro Dendrorhynchoides . A interação entre as primeiras angiospermas e estes animais seria responsável pelo sucesso dessas plantas, que dominam as paisagens dos dias de hoje
(arte: Maurílio Oliveira / Museu Nacional)

Alguém pode imaginar um mundo sem flores?  Em praticamente todas as paisagens dos dias de hoje encontramos as angiospermas, que são as plantas com flores e frutos. Do ponto de vista da classificação formal, elas são agrupadas pelos botânicos na divisão Anthophyta e compreendem em torno de 240 mil espécies (!) – algo perto de 90% de toda a diversidade do reino Plantae.
 
As angiospermas são encontradas em todos os ambientes – rios, lagos, desertos e até mesmo em água salgada ou em áreas extremamente geladas. Quase todos produtos vegetais que nos são servidos nas refeições são derivados de angiospermas, como arroz, feijão, milho, soja, óleos e frutas. No passado, porém, o cenário não era bem assim…
 
Desde que conquistaram a terra firme, há cerca de 500 milhões de anos, diversas outras plantas dominavam as paisagens. Primeiro as briófitas (incluindo os musgos), seguidas das samambaias e cavalinhas. Depois vieram as coníferas e cicadáceas, entre outras. As angiospermas só começaram a se fazer mais presentes na vegetação terrestre há aproximadamente uns 100 milhões de anos. Mas qual é a sua origem? Como eram essas primeiras plantas “com flores”?
 
Um dos fósseis mais importantes relacionados a essa questão foi encontrado há alguns anos na província de Liaoning, China, e recebeu o nome de Archaefructus liaoningensis . Posteriormente, exemplares mais completos desta e de uma outra espécie ( Archaefructus sinensis ), foram descobertos – ambos os trabalhos foram publicados na Science , respectivamente em 1998 e 2002. Os fósseis dessas duas plantas procediam das camadas da Formação Yixian, cuja idade é atualmente estimada em torno de 125 milhões de anos.
 
Entre as principais características das angiospermas atuais estão as flores, que constituem o seu sistema reprodutor e são compostas de quatro partes: sépala, pétala, estame e carpelo. As sépalas, geralmente de coloração esverdeada e forma semelhante às folhas, constituem a superfície externa da flor e agem como uma proteção quando esta está em desenvolvimento. As pétalas, geralmente mais desenvolvidas e bastante coloridas, têm a função de atrair animais para a polinização. O estame é alongado e possui no seu final a antera, onde estão os grãos de pólen (gametas masculinos), enquanto o carpelo (que contém os gametas femininos e onde se desenvolve a fruta com a semente) se situa na parte central.

Fóssil de Archaefructus sinensis
(foto: Ge Sun et al., Science

A flor das duas espécies de Archaefructus não se parece muito com isto. Ela é alongada, saindo diretamente a partir da última ramificação com folhas. Não existem sépalas ou pétalas. O estame, desenvolvido em pares, possui a base curta. O carpelo se situa na parte superior da planta, a uma certa distância do estame. No entanto, o fato de a Archaefructus possuir na mesma haste os órgãos reprodutivos femininos (carpelos, envolvendo as sementes) e masculinos (estames), feição típica das angiospermas, faz com que os paleobotânicos (pesquisadores que estudam os vegetais fósseis) considerem essas plantas como as angiospermas mais primitivas conhecidas até o momento, classificadas em um grupo a parte denominado de Archaefructaceae.

 
Tal interpretação não está livre de crítica e existem alguns pesquisadores que não estão certos de que as Archaefructus seriam realmente angiospermas. No entanto, é importante ter em mente que, ao longo da evolução, as feições morfológicas das angiospermas atuais não deveriam ter surgido todas de uma vez. Aliás, é muito comum que se encontrem no registro fóssil organismos que apresentam estágios “intermediários” dessas características. Também não pode ser esquecido que diferentes partes da planta evoluem em velocidades diferentes – algumas mais rapidamente (como as folhas) do que outras (os caules, por exemplo). Assim, é totalmente concebível que as primeiras angiospermas teriam um sistema reprodutivo típico do grupo (carpelos incluindo os óvulos), mas as outras partes da flor como sépalas e pétalas não desenvolvidas. Tudo isto torna a vida do paleobotânico nada fácil!
 
Outro ponto interessante na pesquisa de Archaefructus indica como pode ter sido a aparência de plantas mais primitivas desse grupo. A forma chinesa é considerada uma planta aquática, cujos ramos se prolongavam até a superfície, sendo que apenas os seus órgãos reprodutivos deveriam estar fora da água. Isto leva à hipótese de que angiospermas ainda mais primitivas poderiam ter sido plantas aquáticas totalmente submersas.
 
Um outro aspecto importante sobre as primeiras angiospermas está ligado à sua reprodução. Atualmente essas plantas se reproduzem pela polinização, processo no qual o grão de pólen (gameta masculino), por meio da ação de insetos, aves e morcegos, é levado até o carpelo (que contém o óvulo), e produz assim a fecundação e o desenvolvimento da semente. Não está certo se as Archaefructus se reproduziriam desta maneira, visto que a polinização também pode ser feita com a ação do vento. Em todo caso, os sedimentos de Liaoning possuem inúmeros restos de insetos e aves, que certamente poderiam ter agido como agentes polinizadores. Além dos pterossauros (répteis voadores), alguns insetívoros que, ao atacar insetos, poderiam ter espalhado pólens que poderiam fecundar plantas vizinhas.
Possivelmente devemos à interação entre os animais da época com as plantas do tipo Archaefructus a evolução das angiospermas, que dominam as paisagens atualmente. Com isso, alem de termos à nossa disposição as flores – símbolo da primavera e do romance – podemos hoje em dia saborear nossa cervejinha, que é feita a partir de duas maravilhosas angiospermas: a cevada e o lúpulo!

Alexander Kellner
Museu Nacional / UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
04/02/05

 

Paleocurtas
As últimas do mundo da paleontologia
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A mini-exposição Encontro de Gigantes na Pré-História do Brasil Central foi inaugurada no Museu Nacional/UFRJ. Apresentando resultados de um projeto de pesquisa sobre mamíferos do Pleistoceno (há cerca de 12 mil anos) encontrados em uma caverna submersa da região de Bonito (MS), a vedete dessa mostra é um filhote de mastodonte – grupo extinto que evoluiu separadamente dos elefantes modernos e dos mamutes. O público pode observar passo-a-passo os trabalhos da reconstrução em vida de um pequeno mastodonte. A mostra deve se estender até o mês de abril.

Neste exato momento um grupo de pesquisadores e alunos do Museu Nacional/UFRJ está realizando trabalhos em conjunto com colegas argentinos na região do lago Los Barreales, a cerca de 90 km da cidade de Neuquén, na província homônima da Argentina. Essa área é muito rica em fósseis de vertebrados do Cretáceo (com cerca 90 milhões de anos), particularmente dinossauros. Veremos quantas novidades este trabalho entre argentinos e brasileiros irá produzir! Saiba mais em http://www.proyectodino.com.ar .

De 4 a 8 de outubro de 2005 será realizado o International Symposium on Dinosaurs and other Vertebrates Palaeoichnology em Fumanya (Barcelona, Espanha), com o objetivo de congregar os paleoicnólogos – pesquisadores que se dedicam ao estudo das pegadas e dos rastros fósseis. O evento é bastante oportuno uma vez que, nos últimos anos, foram realizadas várias descobertas de novas localidades com icnofósseis de vertebrados, que pouca atenção têm recebido pela sociedade em geral.

Restos de sapos fósseis do grupo Bufonidae foram recentemente encontrados em sedimentos de aproximadamente 26 milhões de anos da Bolívia. O material, estudado pelas pesquisadoras Ana Maria Baez e Laura Nicoli, da Universidade de Buenos Aires, pertence ao gênero Bufo , que vive atualmente e possui uma distribuição quase cosmopolita. O estudo, publicado no Journal of Vertebrate Paleontology , mostra que a diversificação dos membros de Bufonidae ocorreu bem antes do que se supunha.

Um estudo sobre um grupo de peixes fósseis de água doce do grupo Paraclupeidae (semelhantes aos arenques), que viveram entre 115 e 45 milhões de anos atrás, corrobora a hipótese de que, em algum momento da evolução, o oceano Ártico era predominantemente de água doce. Segundo os autores Mee-Mann Chang (Institute of Vertebrate Paleontology and Paleoanthropology, China) e John Maisey (American Museum of Natural History, EUA), essa teoria explicaria a distribuição de alguns peixes de água doce em diversos depósitos fossilíferos do Brasil, Guiné Equatorial (na África) e China. O estudo foi publicado no American Museum Novitates .

Uma interessante descoberta foi relatada por pesquisadores do Instituto de Geociências da UFRJ e da UFSCar: urólitios! O material foi encontrado no município de Araraquara (SP) e é procedente de camadas da Formação Botucatu, cuja idade é estimada em aproximadamente 132 milhões de anos. Essa região – um paleodeserto – é bem conhecida pela presença de pegadas fósseis. Até o momento apenas dois exemplares de urólitos (extrusões líquidas fossilizadas) foram encontrados, ambos atribuídos a dinossauros. Esta descoberta, a primeira do tipo no Brasil, foi publicada na Revista Brasileira de Paleontologia e demonstra a diversidade do registro fóssil preservado nas rochas.

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