Uma história mal contada

A descoberta da radioatividade tornou possível um antigo sonho dos alquimistas: a transmutação dos elementos. Acima, detalhe de O alquimista em busca da pedra filosofal, tela de 1771 do inglês Joseph Wright (1734-1797).

Da descoberta da radioatividade, em 1896, à descoberta da fissão nuclear, em 1938, quando se evidenciou a possibilidade da fabricação de artefatos nucleares, novos conceitos científicos foram introduzidos à medida que fenômenos até então desconhecidos eram revelados. Entre tantas novidades, a história registrou equivocadamente a prioridade de algumas descobertas. A identificação do radônio é um dos casos mais interessantes: passemos essa história a limpo.

Um evento essencial para a formulação da física nuclear foi a descoberta da transmutação, seguida imediatamente pela descoberta da lei do decaimento radioativo. Quando, em 1897, Marie Curie (1867-1934) estudava o tório, ela constatou um estranho fenômeno, mas não o explorou a fundo: a atividade do tório parecia aumentar com o tempo.

A cientista franco-polonesa imaginou que fosse algum erro experimental. Abriu o equipamento, renovou o ar no seu interior e reiniciou as medições. Uma vez mais a atividade aumentava, mas a imprecisão das medidas a desestimulou a prosseguir investigando aquele fenômeno misterioso. Dois anos e meio depois, o problema seria completamente resolvido pelo neozelandês Ernest Rutherford (1871-1937) e por seus colaboradores.

A estranha atividade devia-se a algo que inicialmente Rutherford chamou de emanação do tório. No curso do trabalho, ficou evidente que se tratava de um material gasoso altamente radioativo, liberado espontaneamente pelo tório, pelo rádio e pelo actínio. Foi a primeira observação do fenômeno hoje conhecido como transmutação nuclear – processo pelo qual um material dá origem a outros e que vinha há muito tempo sendo perseguido pelos antigos alquimistas. O urânio, por exemplo, transforma-se em tório, este em rádio, o rádio em radônio e este em polônio, que finalmente se converte em chumbo.

Níton, torônio e actônio

O escocês William Ramsay propôs o primeiro nome alternativo para o elemento que ficaria conhecido como radônio. Ramsay recebeu o Nobel de Química em 1904 pela descoberta dos gases nobres.

A identificação precisa do gás que intrigou Rutherford envolveu muita gente e anos de intensa pesquisa. Em 1910, o escocês Sir William Ramsay (1852-1916) e o inglês Robert Whytlaw-Gray (1877-1958), mostraram que a emanação tinha peso atômico maior que o do xenônio. Propuseram o nome níton e símbolo Nt para o novo elemento químico. Essa denominação, originada do latim nitens, que significa brilho, foi oficializada em 1912, pela Comissão Internacional para Pesos Atômicos.

No entanto, diferentes materiais radioativos liberavam diferentes emanações, e a denominação oficial nem sempre era respeitada. Assim, alguns chamavam de radônio (Rn) a emanação liberada pelo rádio, de torônio (Tn) aquela liberada pelo tório e de actônio (An) a proveniente do actínio.

Finalmente, em 1923, mais de uma década após o inglês Frederick Soddy (1877-1956) ter descoberto a existência de isótopos, a União Internacional de Química Pura e Aplicada (Iupac, na sigla em inglês) reconheceu que Rn, Tn e An são isótopos de um mesmo elemento químico, ao qual deram a denominação do mais estável – radônio. Tn passou a denominar-se Rn-220 e An transformou-se em Rn-219.

Tudo que foi dito acima consta de fontes históricas, mas outras fontes, igualmente fidedignas, registram a história diferentemente. A edição em inglês da Wikipédia, por exemplo, afirma que o radônio foi descoberto em 1898 pelo alemão Friedrich Ernst Dorn (1848-1916), que o teria batizado de emanação do rádio. Já o escritor americano nascido na Rússia Isaac Asimov (1920-1992) atribui a Dorn a descoberta do radônio, mas em 1900, conforme registra sua famosa Cronologia das ciências e das descobertas.

Rutherford reabilitado
Uma nova versão dessa impressionante história foi apresentada em 2003, em artigo publicado por James e Virginia Marshall no Boletim de História da Química, da Sociedade Americana de Química. Os autores viajaram até Halle para ler o trabalho de Dorn, publicado em 1900, no qual a descoberta do radônio teria sido anunciada.

Prédio principal da Academia Alemã de Ciências Leopoldina, em que foi localizado o trabalho publicado por Friedrich Ernst Dorn (foto: reprodução).

O artigo em questão foi localizado na Academia Alemã de Ciências Leopoldina. Os autores se surpreenderam com o que viram: Dorn afirmou ali que seu trabalho fora inteiramente baseado no de Rutherford. Embora o alemão tenha sido pioneiro na observação da emanação do rádio, em momento algum ele a considerou diferente da emanação verificada por Rutherford.

Tanto que, ao contrário do que a literatura registra, ele não se refere a ela como emanação do rádio. Ele usa simplesmente o termo ‘emanação’, que havia sido introduzido por Rutherford para o caso do tório. Foi Rutherford quem, em 1904, usou pela primeira vez a expressão ‘emanação do rádio’.

Tudo indica que o equívoco histórico transmitiu-se pelo efeito da citação indireta, em razão da dificuldade de acesso ao trabalho de Dorn. Não se sabe, no entanto, onde surgiu a informação equivocada de que Dorn teria usado a expressão ‘emanação do rádio’.

Dessa tão surpreendente quanto instrutiva história, tiramos a lição de que todo o cuidado é pouco no uso de citações indiretas. Freqüentemente surpreendemos estudantes recorrendo a esse expediente como se estivessem fazendo citações diretas, correndo o risco de contribuir para a difusão de equívocos como o relatado acima.

Carlos Alberto dos Santos
Colunista da CH On-line
Professor aposentado pelo Instituto de Física
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
25/07/2008