Uma mulher extraordinária

A norte-americana Barbara McClintock (1902-1992) é a única mulher a ter sido agraciada com o Nobel de Medicina ou Fisiologia, em 1983 (foto: National Library of Medicine/NIH).

No começo da década de 1980, quando a norte-americana Barbara McClintock ficou conhecida do grande público, ela já era uma simpática velhinha que parecia que a qualquer momento surgiria da cozinha com um bolo de milho quentinho para comermos. Quem pensasse assim não estaria totalmente errado: a especialidade de Barbara sempre foi justamente o milho, embora não propriamente no sentido culinário.

Nascida em 1902, Barbara foi uma das principais cientistas de nosso tempo e seus trabalhos sobre genética vegetal revolucionaram nossa compreensão do genoma. Apesar do sucesso obtido em sua longa carreira, o princípio da sua vida acadêmica não foi fácil, pois naquela época as mulheres ainda eram bastante discriminadas. Barbara chegou até a enfrentar a oposição de sua mãe que, com temor de que ela não se casasse, tentou dissuadi-la de se matricular na Universidade de Cornell. Posteriormente, ela foi vítima de preconceitos que a fizeram ter sido preterida para a obtenção de cargos e promoções.

A relação de Barbara com o milho iniciou-se ainda na década de 1920, quando ela realizou em Cornell pesquisas sobre as modificações sofridas pelos cromossomos desse vegetal. Nessa época, Barbara descreveu o primeiro mapa genético do milho e mostrou a importância para a divisão celular das porções terminais dos cromossomos, conhecidas como telômeros (termo cunhado por ela), e de regiões mais condensadas que mantêm as duas cópias duplicadas dos cromossomos unidas (os centrômeros). Além disso, Barbara foi a primeira pessoa – em 1931 – a descrever a ocorrência do mecanismo de recombinação genética ou crossing-over após analisar a meiose do milho.

Sua maior descoberta, contudo, foi realizada em 1944 quando, trabalhando no laboratório Cold Spring Harbor, ela demonstrou que dois elementos do genoma denominados de Dissociador ( Ds ) e Ativador ( Ac ) podiam trocar de posição nos cromossomos do milho. Essa mudança de posicionamento ou transposição podia ser analisada por meio de mudanças na coloração das sementes desse vegetal. O elemento Ac controla a transposição de Ds e, quando este último move-se casualmente para outra região, ele se liberta dessa inibição e inicia a síntese de um pigmento que leva ao aparecimento de grãos de cores diferentes (mosaicismo) nas espigas de milho. Posteriormente, Barbara demonstrou que esses elementos transponíveis – ou transposons – moviam-se somente após as células serem submetidas a algum tipo de estresse (por exemplo, quando reproduzem ou quando são irradiadas).

Novo conceito de genoma

Microscópio de Barbara McClintock e espigas de milho da espécie estudada por ela em exposição no Museu Americano de História Natural (foto: Smithsonian Institution).

Após clonagem dos genes descritos por McClintock, descobriu-se que o elemento  Ac é um transposon completo que produz uma proteína – transposase – que induz sua transferência para outro local no genoma. Já o elemento Ds é diferente, pois possui uma mutação que faz com que, para se movimentar, ele necessite do auxílio da transposase produzida por Ac .

Essa descoberta mudou, na época, o conceito do genoma como uma entidade estática, encarada como apenas um repositório de informações. Porém, as pesquisas inovadoras realizadas por Barbara McClintock entre 1950-1953 eram conceitualmente difíceis e, por isso, não foram bem acolhidas de imediato pela comunidade científica. Por isso ela resolveu, como Darwin, se dedicar a temas menos polêmicos: as pesquisas sobre a evolução das raças de milho da América do Sul.

As realizações de McClintock somente foram devidamente apreciadas e valorizadas mais de uma década depois, quando os biólogos franceses Jacques-Lucien Monod (1910-1976) e François Jacob (1920-) descobriram os mecanismos da regulação da expressão genética ao estudar um elemento do genoma conhecido como operon lac . Jacob e Monod realizaram suas pesquisas em uma bactéria comum, a Escherichia coli . No entanto, o conceito descrito por ambos em um artigo no Journal of Molecular Biology em 1961 mostrou-se fundamental para o mecanismo de regulação da função celular em todos os organismos conhecidos.

A idéia central de Jacob e Monod é que quando açucares simples, como a glicose, estão disponíveis, a Escherichia coli não desperdiça energia produzindo enzimas necessárias para metabolizar a lactose (um carboidrato mais complexo). O operon lac foi o primeiro mecanismo genético regulatório descrito e envolve a participação de genes adjacentes cuja expressão é regulada pela presença de lactose por meio de um mecanismo de regulação negativa. O elegante trabalho de Jacob e Monod foi rapidamente reconhecido pela comunidade cientifica: em 1965, apenas quatro anos após a publicação, ambos foram agraciados com o Nobel de Medicina ou Fisiologia.

Importância evolutiva da transposição

Selo lançado em 2005 pelo correio norte-americano em homenagem a Barbara McClintock, em uma série dedicada a grandes cientistas daquele país (reprodução).

Atualmente crê-se que a transposição descrita por McClintock está envolvida com a evolução dos organismos, pois os transposons, ao se moverem para outros locais do genoma, podem afetar a estrutura e o funcionamento de outros genes. Em outras palavras, os transposons podem criar mutações.

Embora essas mutações possam proporcionar vantagens evolutivas para seus portadores, elas são maléficas na maioria dos casos. Por isso os transposons foram considerados uma forma parasitária de DNA, com cerca de 2-12 mil pares de nucleotídeos de extensão. Além disso, devido a algumas similaridades entre os transposons e os vírus, alguns cientistas acreditam que esses dois grupos de organismos possuam uma origem ancestral comum.

Atualmente, os transposons têm sido utilizados por cientistas para gerar mutações em genes vegetais. Alguns estudos indicam que esses elementos genéticos móveis e as seqüências deles derivadas podem corresponder a até 45% do genoma humano. Além disso, diversas doenças como o mal da vaca louca (encelofalopatia espongiforme bovina) e patologias humanas como hepatites A e B e distrofia muscular de Duchenne têm sido associadas com esses “genes cangurus”.

A transposição, cujas implicações foram descritas por McClintock há mais de 50 anos, agora tem finalmente a sua importância compreendida. Pelo menos, a relevância dos resultados realizados por Barbara foi reconhecida em tempo e várias homenagens foram prestadas a ela, inclusive o Nobel de Medicina ou Fisiologia de 1983, nove anos antes de seu falecimento – ela é até hoje a única mulher premiada nessa categoria.

Sua mãe podia não se entusiasmar com a idéia de ter uma filha cientista e provavelmente não imaginava o sucesso que sua carreira alcançaria. Contudo, ao menos em uma coisa ela estava certa: Barbara nunca se casou ou teve filhos.

Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line 
01/06/2007