Uma relação insuspeita

A longevidade e a saúde de uma população dependem da relação entre as taxas de natalidade e mortalidade e de aspectos como a capacidade de migração de seus indivíduos. Esses fatores, por sua vez, são influenciados por relações ecológicas como a competição, a predação e o parasitismo.

Afirmações como essas são comuns nos livros de ecologia e não causam qualquer assombro. Porém, afirmar que esses fatores podem estar por trás da própria distribuição de populações humanas pode parecer, no mínimo, controverso. Contudo, pesquisas recentes têm mostrado que processos como a ocorrência de parasitismo têm atuado por milhares de anos sobre a humanidade e que os padrões globais de distribuição espacial das populações humanas e mesmo a nossa evolução estão relacionados com a nossa relação com os agentes infecciosos.

Há indícios de que as primeiras populações humanas já conviviam com doenças transmitidas por animais (zoonoses), por alimentos contaminados e veiculadas por meio de ferimentos ou pelo contato com animais. A dispersão desses indivíduos das savanas africanas para outras regiões acabou por disseminar parte desses patógenos para outros locais, além de proporcionar oportunidades para que novos parasitas infestassem nossa espécie.

Algumas das primeiras populações humanas não tiveram contato com patógenos que nos afligem atualmente. A bactéria causadora da lepra, por exemplo, originou-se no leste da África e Oriente Médio e só foi introduzida nas Américas há cerca de 500 anos. Características intrínsecas de cada patógeno, aliadas a fatores ambientais como padrões de temperatura e o regime de chuvas, influenciaram a distribuição espacial e a ocorrência dessas espécies e de seus hospedeiros.

A diversidade de espécies causadoras de doenças é mais elevada nos trópicos do que em regiões temperadas. Os parasitas mais importantes para a saúde humana ocorrem em países tropicais e subtropicais, devido sobretudo à distribuição geográfica restrita de seus hospedeiros. Por isso, indivíduos que vivem em regiões temperadas são expostos a um número menor de doenças do que pessoas que vivem nos trópicos.

Menos hospedeiros, menos patógenos
Regiões que possuem uma menor diversidade de hospedeiros apresentam uma menor densidade de patógenos. A riqueza de parasitas de hospedeiros não humanos diminui com o aumento da latitude. Parasitas de peixes marinhos, de primatas e de algumas espécies de plantas (como a soja) são exemplos dessa tendência. Além disso, a riqueza de espécies também varia com a longitude, refletindo em alguns casos o padrão de expansão e migração das populações humanas.

Vírus, bactérias e fungos transmitidos diretamente e que habitam o interior de seus hospedeiros são pouco afetados pela variabilidade ambiental. A transmissão desses agentes infecciosos depende basicamente do contágio dos novos hospedeiros.

Em contraste, patógenos que possuem estágios externos (como helmintos, por exemplo), agentes infecciosos transmitidos por vetores e doenças veiculadas por animais são mais fortemente influenciados pelas condições ambientais. A distribuição espacial e as exigências ambientais de seus hospedeiros restringem a distribuição desses patógenos. Quase 60% das 1.407 espécies conhecidas de patógenos humanos são transmitidas por animais e, portanto, limitadas pela distribuição espacial dos hospedeiros.

As doenças humanas transmitidas diretamente, como sarampo e coqueluche, não apresentam uma distribuição espacial característica. Seus agentes etiológicos têm uma elevada capacidade de dispersão. Por outro lado, doenças que possuem um hospedeiro não humano, como a doença de Chagas, são endêmicas de certas localidades devido às exigências ambientais de seus transmissores. O mesmo ocorre com doenças cujos agentes causadores têm reservatórios naturais, como o vírus Ebola, por exemplo, que depende de animais para se dispersar e só muito raramente é transmitido de uma pessoa para outra.

Patologias emergentes como a hantavirose, a dengue e a febre amarela pertencem a esses dois últimos grupos. Inicialmente endêmicas de certas regiões e pouco significativas no âmbito da saúde pública, essas doenças têm se disseminado após a distribuição de seus hospedeiros não humanos ser afetada por fatores como o desmatamento, por exemplo.

Linhagens de patógenos adaptadas à convivência com populações humanas foram selecionadas evolutivamente. Grupos que apresentavam características mais virulentas e que por isso levavam à morte de seus hospedeiros acabavam tendo a sua distribuição comprometida. Outras linhagens mais benignas e que conseguiam se reproduzir enquanto causam uma proporção menor de malefícios a seus hospedeiros humanos se perpetuam. Assim, agentes patogênicos mais nocivos aos seus hospedeiros podem representar uma relação ecológica recente e ainda pouco estabilizada que ocorre, por exemplo, em casos em que o patógeno está ampliando a sua distribuição.

O caso da anemia falciforme
As diferenças nos níveis de exposição a certos patógenos afetam a evolução e a genética de populações humanas? A resposta a essa pergunta parece ser afirmativa, como demonstrado pelas pesquisas que analisam a variabilidade do gene para a betaglobina, uma das subunidades da hemoglobina.

Na anemia falciforme, as células vermelhas do sangue, que normalmente têm um formato discóide (A), assumem formas bizarras que lembram foices (B) – dai o nome da doença.

Algumas mutações no gene responsável pela síntese dessa proteína têm sido mantidas em frequências elevadas em algumas populações humanas, apesar de seus efeitos deletérios. Isso ocorre provavelmente porque eles conferem resistência contra alguns patógenos.

Indivíduos com cópias defeituosas dos alelos da betaglobina (Hb S) possuem uma doença conhecida com anemia falciforme. Essa doença é causada por uma mutação pontual na hemoglobina e leva a alterações nas hemácias, que perdem a sua forma tradicional de disco bicôncavo e passam a ter dificuldades em se movimentar nos capilares sanguíneos. Esse processo leva à ocorrência de uma dificuldade de oxigenação e nutrição de vários locais do corpo, danificando os tecidos.

Pessoas que possuem duas cópias desse alelo mutado, conhecidas como homozigotas, têm uma pequena expectativa de vida e raramente se reproduzem. Já indivíduos heterozigotos, que possuem apenas um alelo alterado, apresentam hemácias normais e uma proporção de células afetadas. Essas pessoas não desenvolvem os sintomas da anemia falciforme ou apresentam-nos de forma branda.

A baixa fertilidade de indivíduos homozigotos para a anemia falciforme deveria fazer com que a frequência dos alelos Hb S diminuísse progressivamente nas populações humanas até atingir patamares muito baixos. No entanto, não é isso o que se observa. Frequências superiores a 20% de células falciformes são encontradas em populações na África tropical. A presença de níveis elevados de genes Hb S também é observada na Grécia, Turquia e Índia. Frequências intermediárias são encontradas na Sicília, Argélia, Tunísia e em países do Oriente Médio e da Arábia. Por outro lado, esse gene está quase ausente no norte da Europa, Austrália e na América do Norte.

A frequência elevada do alelo Hb S em certas populações poderia ocorrer por mutações recorrentes desse gene, ou então caso os indivíduos heterozigotos para esse trato tivessem alguma vantagem seletiva em comparação com os homozigotos dominantes e recessivos.

Vantagem evolutiva?
Pesquisas indicam que a taxa de mutação na hemoglobina não é alta suficiente para manter as frequências observadas do alelo Hb S em algumas populações humanas. Portanto, a seleção a favor dos indivíduos heterozigotos parece ser a melhor explicação. Por que, então, esse gene teria se tornado comum em apenas algumas partes do mundo? E quais são as vantagens que o gene Hb S em heterozigose poderia oferecer aos seus portadores?

Protozoários Plasmodium falciparum, causadores da malária (foto: CDC).

A resposta a esse mistério parece estar relacionada com a malária, uma doença que, apesar de fortemente combatida, é responsável por 1,5 a 2,7 milhões de mortes a cada ano, afetando principalmente crianças com idade inferior a 5 anos. Devido a seu forte impacto sobre a saúde humana, acredita-se que o protozoário causador da malária, conhecido como plasmódio, tenha moldado a evolução genética humana.

Pesquisas realizadas a partir da década de 1950 indicaram que a resistência à malária poderia ser a chave para solucionar o enigma das frequências elevadas do alelo Hb S em populações humanas. Inicialmente, foi demonstrado que a distribuição da malária e do alelo Hb S era coincidente. Além disso, descobriu-se que os indivíduos heterozigotos para esse traço genético apresentavam uma prevalência e uma intensidade mais branda da malária em comparação com os homozigotos.

A resistência desses indivíduos pode ocorrer devido à redução na capacidade do plasmódio de se desenvolver e de se reproduzir em suas hemácias ou então devido à remoção do parasita da circulação dos indivíduos heterozigotos.

Pesquisas posteriores revelaram que existem diversas outras variações no gene da betaglobina que foram selecionadas evolutivamente para proteção contra a malária. Conforme demonstraram esses estudos, a malária pode ser considerada um dos principais fatores relacionados com a evolução dos genes humanos, especialmente para aqueles envolvidos na constituição das hemácias.

Portanto, estudos de doenças como a malária nos dão informações sobre a nossa própria história evolutiva e nos indicam pistas sobre fatores importantes, mais muitas vezes negligenciados que moldam a identidade dos seres humanos.

Jerry Carvalho Borges
Universidade do Estado de Minas Gerais
03/04/2009

SUGESTÕES PARA LEITURA
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