Há alguns meses foi noticiado que o diabo-da-tâsmania – aquele animalzinho conhecido como o Taz dos desenhos animados – estava correndo sério risco de extinção devido a um câncer propagado por meio de mordidas, algo comum entre esses belicosos marsupiais durante disputas por território, presas e fêmeas. Chamava a atenção o aspecto dos indivíduos acometidos pelo tumor, vítimas de horríveis deformações em suas bocas e faces e que, por isso, não podiam mais se alimentar e morriam.
Na edição desta semana da revista Cell , um grupo de pesquisadores liderados por Robin Weiss, do University College de Londres, realizou uma análise detalhada de um outro tipo de tumor que afeta cães, similarmente transmitido entre indivíduos. Esse câncer, conhecido como tumor venéreo transmissível canino (TVTC) ou sarcoma de Sticker, foi descrito há 130 anos e foi utilizado durante algum tempo como modelo de estudo por pesquisadores que desejavam transplantar tumores.
Aspecto microscópico das células tumorais de TVCT, indicadas por setas (foto: E. Nesbit et al. / Universidade da Geórgia).
O TVTC desenvolve-se principalmente na genitália externa dos animais e, ocasionalmente, em outros locais, como boca e olhos. Esse tumor possui baixo poder de gerar metástases, mas pode ocasionalmente irradiar-se para outros órgãos. Ele é disseminado pelo coito ou quando um cão morde, cheira ou lambe feridas de outro animal contaminado. Caso se desenvolva, o tumor progride com rapidez e, em seguida, passa por uma regressão espontânea de três a nove meses. Depois, o cão adquire uma resistência que impede uma nova contaminação por TVTC, embora a maioria dos animais portadores do tumor necessitem de quimioterapia ou intervenção cirúrgia para seu tratamento. Em geral, o TVTC não é letal. As células do TVCT são similares aos histiócitos – tipo de macrófago encontrado apenas no tecido conjuntivo. Nesses tumores também estão presentes várias células do organismo hospedeiro.
Inicialmente, acreditava-se que esse tumor fosse transmitido por um vírus oncogênico, que desencadearia a transformação cancerosa em células do animal hospedeiro. Porém, análises posteriores indicaram que o TVTC é transmitido por células viáveis, mas não por filtrados celulares ou por células mortas.
Na origem, lobos
Após analisar amostras de tumor de 16 cães de diferentes partes do mundo, a equipe de Weiss concluiu que o DNA das células tumorais não correspondia ao dos animais infectados. Além disso, eles notaram que havia muitas semelhanças entre as células tumorais dos cães analisados, o que indicava que tinham uma mesma origem.
A origem das células tumorais de TVTC dos cães atuais remonta a um único lobo que viveu provavelmente na China ou na Sibéria, entre 250 e 2500 anos atrás (foto: Gary Kramer / U.S. Fish & Wildlife Service).
Na busca dessa origem comum, os pesquisadores concluíram que o TVTC é disseminado por células provenientes provavelmente de lobos que tenham cruzado com cães em um passado relativamente recente. A introdução do tumor em cães ocorreu entre 250 e 2500 anos atrás, o que faz desta a mais antiga linhagem de células tumorais conhecidas pela ciência, tendo sofrido incontáveis mitoses à medida que se disseminava de um cão para outro.
As conclusões foram obtidas a partir de análises da taxa de mutação de microssatélites de DNA (microssatélites são regiões polimórficas e repetidas do DNA nuclear usadas como marcadores moleculares para análise da diversidade genética, conforme me ensinou Sergio Pena, também colunista da CH On-line , que foi meu professor na Universidade Federal de Minas Gerais).
O tumor facial dos diabos-da-tâsmania também parece ser transmitido pelas células. Porém, enquanto este causa a morte dos animais infectados, o TVTC não provoca grandes danos. Essa ‘estratégia’ é evolutivamente mais favorável, uma vez que preserva o hospedeiro para que ele possa propagar o parasita para outros animais.
Após invadirem um cão, as células do TVTC procuram suprimir a ação do sistema imune do animal infectado por meio da produção de um fator de crescimento tumoral tipo beta (TGFbeta). Essas células também se valem da ação de uma citocina conhecida como interleucina 6, que é produzida pelos linfócitos do animal hospedeiro e inibe a ação do seu próprio sistema imune. Outra estratégia utilizada pelas células do TVTC para escaparem da ação do sistema imune é a inibição da expressão de seu complexo principal de histocompatibilidade ou MHC – um grupo de proteínas presente na superfície celular e utilizado pelo sistema imune para diferenciar o que é do organismo do que lhe é estranho.
Transmissão em seres humanos
Diabos-da-tasmânia ( Sarcophilus harrisii ) também são vítimas de um tipo de tumor transmissível entre indivíduos por meio de mordidas (foto: Christo Baars).
Os tumores encontrados nos diabos-da-tasmânia e nos cães não são acontecimentos isolados. Hamsters também têm um tipo de tumor similar, que pode inclusive ser transmitido entre indivíduos por mosquitos. Não há ocorrências desse tipo relatadas em seres humanos. Os episódios que mais se aproximam dessa forma de transmissão de tumores talvez sejam casos clínicos nos quais alguns tipos de câncer foram transmitidos entre pacientes por meio de órgãos transplantados.
O estudo desses tipos de tumores pode lançar luz sobre vários aspectos da biologia do câncer. Um dos desafios para a ciência atual é entender as razões e os mecanismos que levam uma ou mais células, antes dedicadas ao bem-estar e ao altruísmo de uma vida multicelular, a se ‘aventurarem’ pelos caminhos de uma vida parasitária.
Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line
11/08/2006