Videojogos, neurojogos

Pais e professores expressam sempre grande preocupação com a influência que as novas tecnologias de comunicação podem ter sobre o funcionamento do cérebro e o desempenho neuropsicológico das crianças.

Segundo os pessimistas, estamos à beira do apocalipse: assoladas pelo excesso de informação, pela atordoante exposição às novas mídias e pela inexorável superficialidade dos conteúdos transmitidos, nossas crianças e jovens tenderiam à deseducação, à agressividade e à falta de profundidade cultural.

Dispomos hoje de um acervo de possibilidades de acesso à cultura e à educação nunca antes imaginado

Não creio que seja assim. Nossos avós se preocuparam com a destruição do teatro pelo cinema, e nossos pais com o desaparecimento deste, ameaçado pela emergência fulminante da televisão.

Também imaginaram que os concertos de música ao vivo seriam substituídos pelas gravações em estúdio lançadas em discos de vinil e depois em CDs. Agora, nos preocupamos com o fim do livro impresso, prestes a ser enterrado pelos computadores e e-books

Nada disso ocorreu. Ao contrário, as novas tecnologias se somaram às mídias mais antigas, e a humanidade dispõe hoje de um acervo de possibilidades de acesso à cultura e à educação nunca antes imaginado.

Kindle
A emergência de e-books como o Kindle, mostrado na foto, não ameaça os livros de papel: as duas tecnologias devem coexistir no futuro (foto: Phillip Torrone – CC 2.0 BY-NC-ND).

Separar o joio do trigo

Não é razoável culpar os formatos sem analisar seu conteúdo. Há livros bons e livros ruins, filmes educativos e outros que estimulam a agressividade e desagregação social. Do mesmo modo, há programas de TV de grande eficácia educacional, outros inócuos e outros ainda negativos. O formato é em princípio neutro: o conteúdo é que importa!

Não é razoável culpar os formatos sem analisar seu conteúdo

O seriado infantil Vila Sésamo foi analisado por educadores e psicólogos americanos há cerca de cinco anos, e a conclusão foi que tem uma influência positiva na alfabetização das crianças.

Por outro lado, o programa Teletubbies provocou o contrário: diminuição do vocabulário e das habilidades linguísticas das crianças telespectadoras. Duas iniciativas com a melhor das intenções, formatos semelhantes e resultados diametralmente opostos…

Vila Sésamo e Teletubbies
Dois programas com finalidades educativas, mas resultados opostos (imagens: reprodução).

Da mesma forma, os programas de computador idealizados para “exercitar o cérebro” de crianças e adultos aprimorando sua capacidade cognitiva podem não fazê-lo. Pior: eles podem até causar uma piora dos indicadores intelectuais dos usuários. Ao contrário, tecnologias criadas apenas para o entretenimento – como os videojogos de ação – podem causar benefícios inesperados.

É preciso, portanto, analisar caso a caso para separar o joio do trigo. E, como em todas as coisas, deve-se distinguir entre uso e sobreuso: comer é necessário e bom; comer demais pode causar dependência e obesidade.

Videojogos e aprendizagem

Partindo dessa ideia aberta e sem preconceito, um grupo de psicólogos americanos da Universidade de Rochester, liderados por Daphne Bavelier, analisou o impacto dos videojogos de ação sobre os mecanismos de aprendizagem e os possíveis determinantes cerebrais de sua ação. Os resultados foram surpreendentes.

O estudo foi feito em 23 rapazes com cerca de 20 anos de idade, divididos em dois grupos: jogadores regulares, que no ano anterior tinham utilizado videojogos de ação ao menos 5 horas por semana; e não usuários, que não tiveram qualquer prática no mesmo período.

Para definir “jogos de ação”, a equipe considerou aqueles que apresentam alta velocidade de eventos e imagens, grande exigência perceptual, cognitiva e motora, múltiplos focos de atenção (diferentes itens apresentados simultaneamente), imagens apresentadas nas bordas da tela e imprevisibilidade (surpresa) temporal e espacial.

Homem Aranha (videogame)
Cena do jogo ‘Homem-Aranha: teia de sombras’. O estudo americano mediu como a aprendizagem é influenciada pelo uso dos jogos de ação, caracterizado por alta velocidade de eventos e imagens, grande exigência cognitiva e imprevisibilidade temporal e espacial, entre outros aspectos (imagem: reprodução).

Os 23 sujeitos foram submetidos a testes para identificar a direção de movimento predominante entre muitos estímulos visuais projetados simultaneamente em um monitor de computador. Eles deviam apertar um botão para indicar se o movimento predominante era para a direita ou para a esquerda. Os pesquisadores podiam variar a proporção de estímulos com movimento sincronizado, misturados a outros movendo-se em todas as direções.

Além disso, os participantes foram solicitados a identificar tons musicais puros de diferentes intensidades, misturados a um chiado constante como uma estação de rádio fora de sintonia. Nesse caso, os tons eram apresentados a um ouvido ou outro aleatoriamente, e os rapazes tinham que apertar os mesmos botões indicando o ouvido direito ou o esquerdo.

O resultado foi interessante: jogadores regulares e não usuários apresentavam igual precisão na identificação dos estímulos, tanto visuais como auditivos. Mas os primeiros eram muito mais rápidos no gatilho: apertavam o botão certo mais rapidamente que os não-usuários. Isso significa que têm maior agilidade de raciocínio e conseguem tomar decisões mais rapidamente.

Jogadores regulares tinham maior agilidade de raciocínio e conseguiam tomar decisões mais rapidamente

E atenção: o melhor desempenho dos jogadores regulares não se restringiu ao sentido da visão, modalidade ativada durante o jogo.

Mais do que isso, estendeu-se à audição, indicando uma transferência transmodal, no jargão técnico. Ou seja: usuários de videojogos de ação não treinam apenas a visão: aprendem as melhores estratégias para tomar decisões com rapidez e eficiência.

Mas será que o efeito se deve ao treinamento ou, ao contrário, os videojogadores são naturalmente selecionados por uma capacidade inata para processar mais eficientemente estímulos visuais e auditivos?

Essa pergunta foi também respondida pelos pesquisadores. O grupo de não usuários recebeu 50 horas de treinamento em videojogos e foi novamente testado depois dessa prática. Não deu outra. Desta vez o mesmo grupo de não usuários teve bom desempenho, tornando-se videojogadores como os rapazes do outro grupo.

Redes neurais e os circuitos envolvidos

Em situações reais, fora do aparato experimental, quando um macaco ou um ser humano visualiza nos lados do campo visual um estímulo em movimento, procura mover os olhos na direção do estímulo e acompanhar o seu movimento, para melhor discernir o que é. Há regiões no córtex cerebral dedicadas à identificação dos estímulos, outras de orientação do olhar, e as primeiras se ligam às segundas.

Os videojogos treinam habilidades cognitivas gerais, e não apenas restritas a uma modalidade sensorial

Esse circuito foi modelado pelo grupo de Rochester utilizando as famosas redes neurais, construções de programas de computador que simulam as operações dos neurônios conectados.

A simulação apoiou plenamente os resultados experimentais, pois indicou uma via de processamento de etapas sensoriais até a interpretação e a elaboração de uma resposta, seguindo curvas muito semelhantes às obtidas com os rapazes testados.

Nesse caso, a modelagem por computador sustentou a constatação mais surpreendente do experimento: os videojogos treinam habilidades cognitivas gerais, e não apenas restritas a uma modalidade sensorial. A pessoa aprende estratégias cognitivas, ou seja, aprende a aprender.

Neuroeducação à vista

Experimentos desse tipo trazem indicações importantes. Primeiro, as novas tecnologias de comunicação e entretenimento não são necessariamente boas ou más: é preciso estudar o seu efeito nas capacidades cognitivas dos usuários. Em segundo lugar: se as novas tecnologias podem ter efeitos positivos, por que não usá-las nos processos formais e informais de educação?

Por que não usar as novas tecnologias nos processos formais e informais de educação?

Videojogos poderiam ser criados com a intenção de educar, e não apenas entreter. Além disso, poderiam apresentar conteúdos menos tendentes à agressividade e à violência e mais voltados para os benefícios da solidariedade e da vida social integrada.

E, finalmente: o conhecimento das estratégias neurais empregadas nas tarefas cognitivas que realizamos a toda hora trará uma base mais sólida para compreender de que modo nosso cérebro realiza essas tarefas com tanta eficiência.

A malandragem definitiva dos educadores será conceber tecnologias que imitem e ajudem o cérebro no processo de aprendizagem.

Sugestões para leitura:

A.M. Owen e colaboradores (2010) Putting brain training to the test. Nature vol. 465: pp. 775-778.

D. Bavelier e colaboradores (2010) Children, wired: For better and for worse. Neuron, vol. 67: pp. 692-701.

C.S. Green e colaboradores (2010) Improved probabilistic inference as a general learning mechanism with action video games. Current Biology vol. 20: pp.1573-1579.

Roberto Lent
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro