Vinte e oito anos depois

Em 13 de setembro de 1987, catadores de lixo, papel e sucata encontraram, nas ruínas de uma clínica radiológica em Goiânia, Goiás, a cabeça de um aparelho de radioterapia contendo uma fonte de césio radioativo (137Cs). A peça tinha valor comercial pela quantidade de aço e, sobretudo, de chumbo, utilizado para blindar a fonte, absorvendo os raios gama do césio.

Com um carrinho de mão e muito esforço, levaram a pesada peça até o quintal de um deles e procederam ao desmonte com ferramentas rudimentares. No centro do artefato havia uma pequena caixa metálica, selada. Sacudida, produzia um som que sugeria conteúdo granuloso. Perfurada, deixou escapar grãos de tamanho variado, como o sal de um saleiro esquecido num canto de armário.

A fonte radioativa era constituída de cloreto de césio, de aspecto semelhante ao do sal de cozinha (cloreto de sódio) e tão solúvel quanto este último. O césio é quimicamente análogo ao potássio e, portanto, tem alta mobilidade e biodisponibilidade. Naquele momento, iniciava-se a dispersão ambiental do 137Cs – até o momento da abertura da fonte, só havia ocorrido irradiação; a partir da abertura, começa a contaminação de ambientes, pessoas, roupas e utensílios.

Cloreto de césio
De aparência semelhante ao sal de cozinha, o cloreto de césio foi a substância radioativa responsável pelo acidente que aconteceu em Goiânia em 1987. (foto: Wikimedia Commons)

Mas uma característica importante do acidente foi o fascínio provocado pelo halo azul que as pedrinhas de 137Cs emanavam, perceptível mesmo à luz do dia. O efeito era devido à forte ionização do ar provocada pela radiação beta e gama do césio. Pensando tratar-se talvez de material precioso, os catadores levaram uma das maiores pedrinhas a um ourives, que, após rápido exame, descartou a hipótese e devolveu a pedra.

A partir daí as pedrinhas de purpurina, como passaram a ser chamadas, foram objeto de curiosidade e brincadeiras, sendo oferecidas a parentes e amigos, adultos e crianças. As primeiras vítimas fatais foram a esposa e a filha de um dos catadores, que, além de forte irradiação externa, sofreram também contaminação interna por ingestão e absorção cutânea.

Reconhecimento tardio

O acidente só foi reconhecido como tal em 29 de setembro, 16 dias após seu início de fato. Foi o tempo necessário para a manifestação dos sintomas mais graves da chamada Síndrome de Irradiação Aguda, embora os serviços médicos tenham falhado em diagnosticá-la.

A resposta inicial ao acidente foi totalmente caótica. O governo estadual relutava em assumi-lo, pois estava em curso na cidade uma prova do circuito internacional de motovelocidade. Algumas quadras do Setor Aeroporto, onde se concentravam os focos de contaminação, foram evacuadas; as casas mais contaminadas foram destruídas, mas dizia-se que era devido a um vazamento de gás. Já os policias militares encarregados da interdição e evacuação, sem acompanhamento ou proteção radiológica, só sabiam que o motivo dessas ações era uma tal bomba de césio. No imaginário popular, bombas explodem. No linguajar médico, bombas bombeiam – uma imagem para se referir ao fluxo invisível de fótons gama que uma fonte de césio irradia.

Cerca de 130 pessoas apresentaram contaminação interna e/ou externa expressiva, sendo algumas dezenas internadas. O acidente causou um total de sete mortes

Assumido o caráter radiológico do acidente, a Comissão Nacional de Energia Nuclear montou uma estrutura emergencial no Estádio Olímpico Pedro Ludovico para monitoração pessoal e longas filas se formaram. Cerca de 130 pessoas apresentaram contaminação interna e/ou externa expressiva, sendo algumas dezenas internadas, cerca de 20 submetidas a tratamento intensivo. O acidente causou um total de sete mortes.

Após trabalho intensivo de algumas centenas de técnicos de instituições diferentes, os locais contaminados foram devolvidos em dezembro de 1987 com níveis naturais de radioatividade, sem traços de 137Cs. Foi criada a Fundação Leide das Neves, assim nomeada em homenagem à mais jovem das vitimas fatais, e encarregada do acompanhamento médico e social das pessoas mais afetadas pelo acidente.

Desdobramentos

Um dos aspectos notáveis do episódio foi o longo embate entre o governo do estado de Goiás e o governo federal quanto ao local e forma de destino final dos rejeitos radioativos gerados nas atividades de descontaminação. Depois de alguns anos de negociação, os rejeitos foram acondicionados de forma segura num depósito definitivo construído em área rural do município vizinho de Abadia de Goiás.

Outro detalhe marcante foi a evidente dificuldade dos encarregados pela resposta ao acidente em se comunicarem com o público, o que, se pensarmos bem, não era nada surpreendente para autoridades que tinham, há décadas, uma política de relações públicas muito clara: não se relacionar com o público e ponto.

Durante longos meses, os goianos discriminaram os moradores do bairro afetado

Diretores e técnicos se esgoelaram em reuniões com uns e outros para explicar a diferença entre irradiação e contaminação, tentando deixar claro que contaminação irradia, mas irradiação não contamina e, portanto, devemos temer os contaminados, mas não os irradiados. Tudo em vão. Na prática, se uma pessoa tinha qualquer tipo de envolvimento no acidente, estava “radiada”, o que significava que estava riscada da lista, excluída do convívio social. Durante longos meses, os goianos discriminaram os moradores do bairro afetado, foram discriminados pelo resto do estado, e o estado discriminado pelo resto do país.

Algumas mortes, verbas e décadas depois, cabe perguntar: pode acontecer tudo de novo? No front internacional, o acidente motivou norma da Agência Internacional de Energia Atômica proibindo a fabricação de fontes de radiação que não sejam compactas e, portanto, de difícil fragmentação. No front nacional… Bem, o Brasil continua sendo um país continental, a pobreza ainda é uma mazela, a normatização e fiscalização de atividades nucleares continua sendo monopólio de uma instituição federal sediada no Rio de Janeiro e as secretarias de saúde, como as demais, continuam aparelhadas ao sabor dos caprichos dos feudos políticos de cada estado. Isto conspira contra a memória técnica, a continuidade administrativa e o mínimo de eficiência exigido de órgãos que honrem seu suposto mandato. Honra, mandato? Que terreno pantanoso…

Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro