“Antigamente, a morte era uma tragédia – muitas vezes cômica
– na qual se representava o papel daquele que vai morrer.
Hoje, a morte é uma comédia – muitas vezes dramática – onde
se representa o papel daquele que não sabe que vai morrer.”
Philippe Ariès
A visita ao túmulo de um ente querido nos parece um ato corriqueiro, tão familiar que pensamos ser um hábito que sempre existiu e que já é parte da natureza humana. No entanto, em seu livro História da morte no Ocidente , que acaba de ser relançado no Brasil, o historiador francês Philippe Ariès (1914-1984) mostra que a atitude do homem diante da morte mudou muito ao longo dos séculos e que a forma como ela é hoje encarada é, na verdade, muito recente.
As transformações da representação social da morte passam despercebidas por serem muito lentas, seguidas por longos períodos de estabilidade. O tempo que as separa equivale a várias gerações e ultrapassa a capacidade da memória coletiva. Para traçar um panorama dessas mudanças desde a Idade Média, Ariès se baseou em textos literários, inscrições em túmulos, obras de arte e até diários pessoais.
Segundo o historiador, havia no início da Idade Média uma familiaridade com a morte, que era um acontecimento público. Ao pressenti-la, o moribundo se recolhia ao seu quarto, acompanhado por parentes, amigos e vizinhos. O doente cumpria um ritual: pedia perdão por suas culpas, legava seus bens e esperava a morte chegar. Não havia um caráter dramático ou gestos de emoção excessivos.
O corpo era enterrado nos pátios das igrejas — que também eram palco de festas populares e feiras. Mortos e vivos coexistiam no mesmo espaço. A partir de 1231 foram proibidos jogos, danças e feiras nos cemitérios: começava a soar incômoda a proximidade entre mortos e vivos. As sepulturas, anônimas até o século 12, passaram a ser identificadas por inscrições, efígies e retratos: era importante preservar a identidade mesmo após a morte. A arte funerária evoluiu muito do século 14 ao 18.
Túmulo de Inês de Castro em Portugal (séc. 14). Na época, era costume a representação do morto por uma estátua, às vezes a reprodução de uma máscara modelada no rosto do defunto
A partir dos anos 1930, a medicina mudou a representação social da morte: já não se morre em casa, entre parentes, mas no hospital, sozinho. Os avanços da ciência permitem prolongar a vida ou abreviá-la. Pacientes podem ser condenados a meses ou anos de vida vegetativa, ligados a tubos e aparelhos.
História da morte no Ocidente é o resultado de 15 anos de pesquisa de Ariès sobre o tema. Suas 305 páginas reúnem um apanhado de diversos artigos e conferências preparados pelo autor entre 1966 e 1975. Esses ensaios foram produzidos de forma independente, o que explica eventuais redundâncias. O tema da obra, no entanto, é fascinante, e a edição brasileira traz dezenas de fotos e reproduções de obras de arte para ilustrá-los.
História da morte no Ocidente –
da Idade Média aos nossos dias
Phillippe Ariès (trad.: Priscila V. de Siqueira)
Rio de Janeiro, 2003, Ediouro
312 páginas – R$ 34,90
Adriana Melo
Ciência Hoje on-line
24/06/03