Pingüins-rei machos podem armazenar comida no estômago sem digeri-la por até três semanas. A proeza tem causa nobre: o alimento destina-se aos filhotes por nascer. Mas isso não é novidade. Difícil era descobrir como essas aves são capazes disso. Um estudo coordenado pela pesquisadora Cécile Thouzeau, do Centro de Ecologia e Fisiologia Energética (França), traz uma hipótese: compostos antimicrobianos inibiriam a degradação dos alimentos pelas bactérias presentes no tubo digestivo dos pingüins.
Pingüins-rei (Aptenodytes patagonicus). Foto: Charles-André Bost
Tanto pingüins machos como fêmeas participam da incubação: na chocagem dos ovos, eles alternam períodos de jejum e jornadas ao mar para se alimentarem. Cabe ao macho a última parte do processo, enquanto a fêmea não retorna para o nascimento dos filhotes. A volta, porém, é imprevisível e pode levar mais de nove dias, o que gera a necessidade de armazenar alimento para a prole. “Mas não são todos os pingüins-rei machos que preservam comida no estômago”, conta Cécile no artigo publicado na revista Polar Biology.
Ela e sua equipe estudaram 25 amostras recolhidas no estômago de 12 pingüins-rei: seis armazenavam comida, seis a digeriam. Os cientistas observaram ainda a temperatura gástrica de sete outros machos. A análise da acidez do estômago dos 12 pingüins iniciais revelou que, entre os que conservavam o alimento, o pH variava entre 3,5 e 6,2; entre os que o digeriam, o valor ia de 1,9 a 4,4 (um pH baixo é indicador de digestão gástrica ativa).
Os valores de pH e temperatura (média de 38o C) verificados representam condições favoráveis para o crescimento das bactérias. Havia algo, no entanto, que inibia a ação bacteriana nos pingüins que conservavam alimento. A equipe analisou então as bactérias encontradas nos pingüins que digeriam a comida e nos que não a digeriam.
O resultado foi impressionante: todas as amostras colhidas no segundo grupo apresentavam bactérias com esporos, em estado não atuante. No primeiro, as bactérias esporuladas representavam apenas 46% das amostras. A constatação sugere que os microrganismos do segundo grupo passam por condições de estresse no ambiente onde vivem, o que anula sua ação.
Alguns pingüins-rei machos podem preservar comida no estômago para
alimentar a prole. Fotos: C. Thouzeau (esq.) e Jean-Patrice Robin (dir.)
Segundo Cécile, a inibição das bactérias pode se dar pela presença de substâncias antimicrobianas no estômago dos pingüins-rei. Tais compostos são encontrados no fitoplâncton, alimento das presas dessas aves. Ela especula ainda que os próprios pingüins poderiam ser capazes de produzir agentes bactericidas. “É preciso procurar essas substâncias no conteúdo estomacal das aves para confirmar a hipótese”, disse ela à CH on-line . “Em caso afirmativo, será preciso isolá-las e identificá-las, para em seguida determinar sua origem.” A equipe deve também investigar como ocorre o bloqueio[1] da digestão no estômago das aves.
“A descoberta de aspectos até então desconhecidos da vida dos pingüins-rei é muito importante para a ciência”, diz Salvatore Siciliano, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz). “As condições de estudo de espécies antárticas sempre foram muito severas.”
Elisa Martins
Ciência Hoje On-line
12/03/03