Conversão promissora

Até pouco mais de uma década atrás, acreditava-se que os neurônios não se regeneravam, que depois da perda de uma célula, uma nova não brotaria no cérebro para substituí-la. Hoje se sabe que isso não é verdade. Algumas regiões do cérebro têm essa capacidade de reparação, mas não uma das mais importantes: o córtex, a área responsável pelos pensamentos mais complexos. Um novo estudo, no entanto, conseguiu criar novos neurônios nessa área e abre caminho para futuras terapias para lesões cerebrais.

O grupo, de cientistas da Alemanha e da França, transformou um tipo específico de células neurais, que compõem a glia, do córtex lesionado de camundongos em neurônios funcionais. A glia é formada por células que dão suporte e interferem na função dos neurônios desde a sua nutrição até a transmissão de impulsos nervosos. São muito abundantes e, ao contrário dos neurônios, não estabelecem sinapses, as conexões que o cérebro usa para transmitir informações. A sua transformação em neurônios não é novidade, mas esta é a primeira vez que o processo é realizado no córtex de animais vivos com provas diretas de que as novas células de fato se originaram da glia.

A conversão foi obtida com o uso de um retrovírus geneticamente modificado e dois fatores de transcrição, o Sox 2 e o Ascl1. As duas moléculas são proteínas que têm a capacidade de se ligar ao DNA e controlá-lo de modo que a célula retorne a um estágio de pluripotência – o que significa que ela passa a ter a potencialidade de se transformar em qualquer outro tecido.

Abreu: “É algo ainda muito inicial, mas que abre uma porta enorme para possibilidades terapêuticas”

Os cientistas inseriram as duas proteínas no vírus e o programaram geneticamente para infectar a glia. O vírus foi injetado no cérebro de camundongos, alguns saudáveis e outros danificados para a pesquisa. Nos animais saudáveis, não houve efeito. Já nos que apresentavam lesão cerebral, os cientistas observaram o surgimento de neurônios. Na presença de uma inflamação causada pela lesão, a glia infectada, que se tornou pluripotente, deu origem às novas células. O estudo foi publicado esta semana no periódico Cell Reports.

“Em uma situação típica de lesão no córtex, o que ocorre é a formação de uma cicatriz no local e não regeneração”, explica o neurobiologista brasileiro José Garcia Abreu, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Em uma lesão, prevalece o recrutamento de células do sistema imune, como os macrófagos do cérebro (a microglia) e os astrócitos, que vão iniciar a cicatrização, que, geralmente, implica em um déficit cognitivo por causa da perda de neurônios no local afetado.”

Casos famosos de lesões cerebrais são o do jogador de futebol paraguaio Salvador Cabañas e do ator brasileiro Gerson Brenner, que levaram ambos um tiro na cabeça que afetou o córtex. Abreu explica que o experimento é uma grande esperança para pacientes como esses. “É algo ainda muito inicial, mas que abre uma porta enorme para possibilidades terapêuticas”, aposta.

No entanto, a estratégia de conversão da glia cortical em neurônios ainda precisaria de muitos aperfeiçoamentos antes de chegar à aplicação clínica. O próprio líder sênior do estudo, Bendikt Berninger, da Universidade Johannes Gutenberg da Mongúcia, na Alemanha, é cauteloso. “Dada a severidade das lesões cerebrais, ainda estamos muito longe de usar essa abordagem para terapia, é necessário muito mais pesquisa básica”, diz. “Mas o campo é tão dinâmico que é impossível prever quando ou se essa abordagem vai chegar à clínica.”

Ligação desafiadora

Um dos grandes obstáculos que precisam ser transpostos antes que a pesquisa gere um possível tratamento é entender por que a conversão ocorre. “Nesse estudo, a conversão só ocorreu quando houve a lesão, então é preciso entender o que na lesão desencadeia essa transformação”, comenta Abreu.

Neurônios
Próximo à região da lesão, mais neurônios se formaram. No entanto, apenas dois de 17 eram plenamente funcionais. (imagem: Heinrich et al/ Cell Reports)

Outro desafio é melhorar a capacidade da técnica. Na pesquisa, os cientistas observaram, no camundongo com o melhor desempenho, o surgimento de 17 neurônios originados das células gliais infectadas. Mas apenas dois passaram nos testes que os caracterizam como totalmente funcionais. Ou seja, os neurônios foram criados, mas nem todos funcionaram como deveriam, por exemplo, estabelecendo ligações.

O neurocientista Marcos Romualdo da Costa, pesquisador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) que já colaborou diretamente com Berninger em outros estudos, afirma que, em testes in vitro, os cientistas têm obtido melhores resultados. 

In vitro mais células se transformam em neurônios, sobrevivem por mais tempo e são mais maduras”, aponta. “Um gargalo que precisa ser resolvido é entender o que no cérebro limita esse resultado e também conseguir gerar neurônios que se integrem ao conjunto de circuitos cerebrais e estabeleçam conexões. Quando conseguirmos isso, aí sim estaremos mais próximos de uma aplicação.”

 

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line