Curt Nimuendaju: um alemão com alma de índio

Em 2003, a etnologia brasileira comemora os 100 anos da chegada ao país de um de seus pioneiros. Durante 40 anos, Curt Unkel visitou tribos indígenas em 42 expedições pelo Brasil e documentou suas línguas, lendas e tradições. Se você não sabe de quem estamos falando, fique tranqüilo: você não está só. Apesar de sua importância, a obra de Curt permanece quase toda inédita em português.

null Nascido na Alemanha em 1883, ele vem para São Paulo realizar um sonho de infância: estudar os índios da América do Sul. Seu primeiro contato é com os Guarani-Apapocuva, com os quais morou durante oito anos e de quem ganhou o nome Nimuendaju (“aquele que constrói sua própria casa”), que adotaria oficialmente mais tarde ao naturalizar-se brasileiro. Uma compilação das lendas sobre a criação e destruição do mundo dos Apapocuva foi seu primeiro trabalho etnográfico publicado, em 1914, na Alemanha.

Outro destaque foram os trabalhos sobre a organização social dos povos de língua Jê, tipicamente brasileiros. Assim como no caso dos Apapocuva, até então não havia relatos sobre esses grupos. Mas seu trabalho mais importante é o mapa etno-histórico da América do Sul: editado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 1980, ele compila dados sobre cerca de 1400 grupos étnicos de 40 troncos lingüísticos e serve até hoje de referência.

O etnólogo visitou mais de 46 povos. Em alguns casos, se inseria totalmente na sociedade indígena e desenvolvia estudos mais aprofundados. Mas às vezes os índios eram tão poucos que ele só podia salvar sua cultura do esquecimento. “Nimuendaju trabalhava sem parar e privilegiava grupos ameaçados de extinção: ele fazia uma antropologia de urgência”, explica a lingüista Charlotte Emmerich, especialista na obra do pesquisador e professora aposentada do Museu Natural da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Nimuendaju não se detinha só na cultura material de um povo, objeto de estudo da etnologia, mas também documentava sua língua, com um complexo sistema de sinais diacríticos para representar com a maior exatidão possível os sons indígenas. Ele registrou mais de uma centena de vocabulários (alguns com até 1000 itens) e vários esboços gramaticais, todos com suas correspondências em alemão ou português (54 desses estudos nunca foram publicados).

Mas, acima de tudo, Nimuendaju foi um grande indigenista. Ele não escondia seu desprezo pelos responsáveis pela miséria física e psicológica dos índios, muitas vezes explorados e obrigados a trabalhar em regime de escravidão. Por isso, fez inimigos entre as populações vizinhas às tribos. Quando morreu em 1945, em uma aldeia Ticuna no Alto Solimões, já estava doente, mas há hipóteses de que sua morte não tenha sido natural.

Segundo Charlotte, os estudos de Nimuendaju não foram publicados no Brasil por não haver uma editora ou revista científica com recursos gráficos para reproduzir a grande quantidade de diacríticos utilizados por ele. Grande parte da obra de Nimuendaju está hoje no Museu Nacional da UFRJ e no Museu Paraense Emílio Goeldi, as duas instituições que apoiaram suas pesquisas.

Existem projetos de digitalizar a última versão do mapa e reunir toda sua obra (monografias, trabalhos lingüísticos e coleção de mitos), um sonho antigo do próprio Nimuendaju. “É o mínimo que podemos fazer para dar o devido reconhecimento a um dos maiores pesquisadores dos índios brasileiros.”

Rafael Barifouse
Ciência Hoje On-line
09/12/03