De mãos dadas

É consenso entre especialistas que muitas doenças, principalmente as tropicais, são postas em segundo plano pelas empresas que produzem remédios. De 1975 a 2005, foram desenvolvidos apenas 21 medicamentos para combater essas enfermidades – o equivalente a 1% do total de 1.556 lançamentos farmacêuticos no mercado, segundo a organização internacional Iniciativa de Medicamentos para Doenças Negligenciadas. Motivo: as doenças tropicais não são um mercado lucrativo.

Para driblar o problema, um grupo internacional de aproximadamente 30 cientistas fundou a Rede de Pesquisa de Produtos Naturais contra Doenças Negligenciadas (ResNetNPND, na sigla em inglês), que pretende elucidar mecanismos bioquímicos desconhecidos dos causadores das doenças tropicais e buscar soluções terapêuticas para elas. Tudo isso será feito utilizando-se o potencial natural da biodiversidade, a partir de compostos isolados de plantas, fungos e animais marinhos.

“A rede vai coordenar o trabalho de vários grupos de pesquisa e disponibilizar informações, acessíveis somente a seus membros, em uma plataforma on-line”, conta a química Tânia Almeida Alves, membro da rede e pesquisadora do Centro de Pesquisas René Rachou, regional da Fundação Oswaldo Cruz em Minas Gerais.

A criação da rede foi discutida quando o grupo se reuniu em abril deste ano para um workshop na cidade alemã de Münster. O encontro fez parte das atividades do Ano Alemanha-Brasil de Ciência, Tecnologia e Inovação.

Mortais, mas esquecidas

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), doenças negligenciadas são enfermidades para as quais não há tratamento eficaz ou adequado, apesar dos avanços da ciência. Se não forem tratadas, elas podem levar à morte.

“Por afetar pessoas com pouca ou nenhuma voz política, que vivem majoritariamente em áreas tropicais ou subdesenvolvidas, essas doenças são ignoradas por muitas indústrias farmacêuticas e governos”, explica Alves.

A doença de Chagas e a leishmaniose são as mais conhecidas. E os dados impressionam. Chagas, causada pelo Trypanosoma cruzi, é endêmica em 23 países da América Latina e mata mais pessoas na região que qualquer outra doença parasitária. Os tratamentos atuais para a enfermidade têm taxas insatisfatórias de cura e apresentam efeitos colaterais graves.

A leishmaniose mata todos os anos aproximadamente 51 mil pessoas – em sua maioria crianças – no Brasil, na Índia, no Sudão e na Etiópia. Além disso, são contabilizados anualmente cerca de 500 mil novos casos da doença.

Mosquito flebotomíneo
Mosquito flebotomíneo, vetor do protozoário causador da leishmaniose. A doença mata cerca de 50 mil pessoas todos os anos, principalmente crianças. (foto CDC – Frank Collins e James Gathany)

Causada por protozoários do gênero Leishmania, essa infecção, que produz feridas na pele e afeta o fígado e o baço, tem tratamento. Mas ele não só é difícil de administrar como também é tóxico e caro.

Alternativa mais fácil

Um bom exemplo do que fará a rede internacional é o que já faz o grupo coordenado pela química do Centro de Pesquisas René Rachou. Os pesquisadores mineiros tentam identificar os compostos ativos de cerca de 10 mil extratos de plantas, fungos e algas capazes de atuar particularmente contra os parasitas Leishmania amazonensis e Trypanosoma cruzi.

Esse trabalho, semelhante ao de procurar agulha em um palheiro, já rendeu resultados positivos. Alves e sua equipe descobriram que uma gota de extrato do caule da planta Piptadenia adiantoides (nativa das regiões Norte, Nordeste e Sudeste do Brasil) ou do fungo Cochliobolus sp. (que vive associado a essa planta) é capaz de destruir os protozoários da leishmaniose e da doença de Chagas.

Piptadenia adiantoides e Cochliobolus
‘Piptadenia adiantoides’ (à esquerda), espécie nativa das regiões Norte, Nordeste e Sudeste do Brasil. Uma gota do extrato de seu caule ou do fungo ‘Cochliobolus’ sp. (à direita), endógeno da planta, pode destruir protozoários da leishmaniose e da doença de Chagas. (fotos: Luiz Rosa e Tânia A. Alves, respectivamente)

Mas Alves ressalta que esses resultados foram obtidos in vitro. “Embora tudo indique que estamos na direção certa, é cedo para cantar vitória”, afirma, com cautela. O próximo passo será fazer testes de toxicologia das substâncias e passar para a etapa de experimentos com camundongos.

“Acreditamos que em três anos podemos ter um composto que servirá de matéria-prima para criação de um medicamento menos tóxico e mais efetivo contra a leishmaniose e a doença de Chagas”, calcula a pesquisadora.

É para reverter cenários dramáticos, parcialmente invisíveis à maioria das pessoas que vivem em centros urbanos, que os cientistas da Rede de Pesquisa de Produtos Naturais contra Doenças Negligenciadas estão trabalhando. O trabalho mal começou, mas já se pode ver alguma luz no fim do túnel.

Luan Galani

Especial para a CH On-line / PR