Na cidade do Rio de Janeiro, são registrados, em média, 5.200 casos de desaparecimento por ano. Alguns dos desaparecidos voltam para casa dias depois; outros, para o desespero dos familiares, são encontrados mortos – em ocorrências que variam de acidentes como atropelamento ou afogamento a assassinatos.
Centenas de casos, no entanto, ficam sem solução. Foi sobre eles que a policial civil Gisele Martins de Souza se debruçou em monografia apresentada no Curso de Especialização em Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes. Foram avaliados cerca de 200 casos não solucionados de desaparecimento, ocorridos entre janeiro e dezembro de 2010.
“A falta de materialidade do corpo difere o desaparecimento de qualquer outro crime, dificulta imensamente a investigação”, explica Souza.
De fato, o desaparecimento é tão diferente de outros crimes que nem se encaixa nessa categoria – ou seja, não é tipificado no Código Penal. Quando a família vai fazer o registro de ocorrência, o caso é tratado apenas como ‘fato atípico’, uma espécie de acontecimento administrativo.
A consequência desse tipo de registro não é das melhores, afirma a policial. “O tratamento destinado à maioria dos casos de desaparecimento não é prioritário, afinal, não se trata da investigação de um crime. Entre apurar um crime e um ‘fato atípico’, na lógica policial, o primeiro tende a prevalecer.”
Em seu trabalho, Souza defende que não apenas seja revisto o tipo de registro atribuído ao desaparecimento, mas também que o próprio inquérito seja realizado com mais atenção pelos policiais.
“Em 45% dos casos, por exemplo, não há informação se o desaparecido tem ou não algum problema mental”, diz Souza. “É uma omissão muito grande não se preocupar em colocar esse dado na ocorrência, é uma informação essencial”, ressalta.
Além disso, ela defende uma maior especialização das delegacias, com bancos de dados mais informativos, bancos de DNA atualizados e também equipe multidisciplinar para dar suporte à família dos desaparecidos.
“Muitas vezes, ter um parente desaparecido na família é pior que a morte”, afirma Souza. “Para muitas famílias, o ritual do enterro encerra um ciclo; é essencial que contemos com um psicólogo especializado para cuidar dessas famílias na delegacia.”
Acesso facilitado
Pelo fato de Souza estar alocada justamente na seção de descoberta de paradeiro da Divisão de Homicídios do Rio de Janeiro, a coleta de dados foi facilitada. Não são poucos os casos de pesquisadores que reclamam da dificuldade de ter acesso aos números e relatos das famílias de desaparecidos. Talvez por isso, reclama a policial, haja tão poucos estudos do gênero.
Souza, com anos de experiência em investigação e tateando ainda o campo acadêmico, usa seu tino policial para cruzar dados que poderiam passar despercebidos num primeiro olhar.
“Entre os desaparecidos, 77% são homens, pobres, de baixa escolaridade; números extremamente semelhantes aos dados de pessoas assassinadas no Rio de Janeiro”, afirma a policial, traçando um paralelo entre a segurança pública e os desaparecimentos. “Além disso, a maior parte dos desaparecidos vem da zona oeste, onde há atuação em massa de milicianos e traficantes; é possível relacionar homicídios não solucionados e ocultação de cadáver com esses supostos desaparecimentos.”
Outro dado que ratifica a relação do crime organizado com os desaparecimentos é o teor dos depoimentos das famílias. Não é raro, diz Souza, perceber “segredos” por trás de cada palavra. Omissões que prezam muitas vezes por blindar o parente de alguma acusação legal – envolvimento com drogas ou com crime, por exemplo –, mas que em outros casos também são fruto de ameaças do crime organizado.
De acordo com Souza, existem pessoas que vão depor na delegacia de outro bairro por medo de algum envolvimento policial com os criminosos. “De nada adianta, já que o registro de ocorrência segue para a delegacia do bairro em que a pessoa desapareceu”, explica. “É inadmissível ter medo da polícia que vai te servir.”
Quebra-cabeça complicado
Segundo a pesquisadora, é muito difícil traçar um perfil mais completo desses desaparecidos. A relação que ela tentou estabelecer com a segurança pública é “apenas uma tentativa”. E mesmo essa tentativa esbarra na tal “falta de materialidade do corpo”. Na análise dos depoimentos dos familiares, Souza relata que quase 90% dos desaparecimentos aparentam não ter motivação. Apenas 9% deles têm forte indício de crime.
“Se no Rio de Janeiro já é complicado montar o quebra-cabeça do desaparecimento, no Brasil parece quase impossível estabelecer um perfil genérico dos desaparecidos”, diz Souza. “O que podemos dizer de modo mais genérico pela nossa experiência no dia a dia na polícia é que esses desaparecimentos têm a ver com questões sociais e de saúde, como violência e relação com drogas.”
A policial usa como exemplo a região Centro-Oeste, com alto índice de desaparecimento de crianças e adolescentes. Segundo ela, esse fato deve-se à violência doméstica, que levaria à fuga de muitos filhos e enteados de casa.
No Rio, o número de crianças e adolescentes desaparecidos chama atenção, somando 23% dos casos. Além de relacionar esse sumiço com as taxas de homicídio da cidade, Souza crê que, assim como no Centro-Oeste, a violência familiar possa estar incentivando a fuga dos jovens de seus lares. E dá um último aviso.
“De modo diferente do que muitas pessoas dizem, não é preciso esperar 48 horas para fazer o registro de ocorrência, isso é uma lenda. Se a pessoa se atrasar cinco minutos e isso soar estranho, vá à delegacia e avise – 48 horas podem ser o tempo para salvar uma vida.”
Thiago Camelo
Ciência Hoje On-line
Este texto foi atualizado para incluir a seguinte alteração:
Gisele Martins de Souza entrou em contato com a redação para sugerir mudança em uma de suas declarações: “As pessoas tendem a depor na delegacia de outro bairro por medo de algum envolvimento policial com os criminosos […]”. Apesar de ter dado essa declaração, ela entende que não ficou claro o sentido do que quis dizer. Decidimos, portanto, modificar a estrutura da frase para: “De acordo com Souza, existem pessoas que vão depor na delegacia de outro bairro por medo de algum envolvimento policial com os criminosos […]”. (19/09/2012)