Detecção precoce

Um exame rotineiro para muitas mulheres, o papanicolaou, pode se tornar uma ferramenta importante de detecção do câncer de ovário e endométrio. Pesquisadores norte-americanos, em parceria com brasileiros, desenvolveram um teste de DNA que, aplicado na amostra de fluido uterino colhida no procedimento médico, identifica a presença dessas doenças ainda em estágio inicial. 

Hoje, o exame papanicolaou é usado no diagnóstico de câncer de colo de útero e HPV. Desde que começou a ser amplamente implantado, a morte por essas doenças caiu 75%. O mesmo não ocorreu com o câncer de endométrio, um dos mais comuns, e com o câncer de ovário, que apesar de raro é mais agressivo. 

Essa constatação foi o que motivou os pesquisadores da Universidade Johns Hopkins e da Universidade de São Paulo (USP) a criar um modo seguro de detecção desses cânceres. No papanicolaou, o médico recolhe um esfregaço de células do colo do útero para análise em laboratório. O endométrio e os ovários ficam acima da região examinada, mas as células cancerosas desenvolvidas nesses locais acabam caindo no colo do útero. E são essas células soltas o alvo do novo teste, batizado de PapGen e descrito em artigo na edição corrente da Science Translational Medicine.

Os pesquisadores acreditavam que um teste de DNA dessas células poderia identificar a presença do câncer. Para provar isso, eles analisaram o material genético de cânceres de ovário e endométrio de 46 pacientes de hospitais universitários, inclusive do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo. As amostras usadas foram de biópsias feitas durante cirurgias e guardadas nas instituições.

Com essas análises e estudos anteriores de outras equipes, eles identificaram as 12 principais mutações genéticas nos tumores. Depois, buscaram por esses marcadores genéticos nas amostras de exames de papanicolaou das mesmas pacientes. O teste de DNA foi capaz de identificar o câncer de endométrio em todas as 24 mulheres com a doença. Para o câncer de ovário, a reposta não foi tão eficaz, 9 das 22 pacientes tiveram o câncer detectado.

Os métodos atuais para detecção do câncer de ovário não são eficientes e podem até causar mais males que benefícios

Mas segundo o médico Jesus de Paula Carvalho, chefe do setor de ginecologia oncológica do Instituto do Câncer e coautor do estudo, já é um grande avanço. Carvalho aponta que o câncer de ovário se desenvolve rapidamente e sem sintomas e que os métodos atuais para detecção não são eficientes e podem até causar mais males que benefícios.

“O grande desafio da ginecologia é conseguir o que estamos mostrando, um método para detectar o câncer de ovário em estágio inicial”, diz. “O que se faz hoje é usar o exame clínico, a ultrassonografia transvaginal e exames de sangue, mas os resultados têm se mostrado ineficientes em reduzir a mortalidade. As sociedades médicas têm até não recomendado o diagnóstico precoce por meio desses procedimentos por causa do alto número de falsos positivos que acabam levando a intervenções e cirurgias desnecessárias, com risco de morte.”

Estudos mostram que a descoberta da doença ainda em estágio inicial, quando o tumor está restrito ao órgão e não se espalhou pelo aparelho reprodutor, resulta em uma chance de sobrevida de cinco anos da paciente de até 90%. Já se for identificado somente em estágio avançado, essa chance de sobrevida cai para 34%.

Refinamento

Segundo outro autor da pesquisa, o oncologista Isaac Kinde, da Universidade Johns Hopkins, a maior dificuldade de detectar o câncer de ovário com o teste PapGen se deve à distância do órgão em relação à região examinada no papanicolau. As células cancerosas do ovário precisam percorrer as trompas e a parte superior do útero até chegar ao colo; por isso menos material para análise é encontrado.

Esquema câncer
A nova forma de diagnóstico precoce analisa o DNA presente nas células da amostra do exame papanicolau à procura de marcadores de câncer. (ilustração: Elizabete Cook)

Mas Kinde acredita que é possível tornar o teste mais sensível com pequenas mudanças, como a escolha de determinados períodos do ciclo menstrual para fazer o exame e a coleta de material mais profundo. O pesquisador também avisa que sua equipe já está procurando por novos marcadores genéticos para o câncer. 

O estudo precisa agora ser replicado com mais pacientes para confirmar os resultados. Aqui no Brasil, a neurologista Suely Marie, da USP, que também participou da pesquisa analisando o DNA dos tumores, avisa que planeja iniciar um experimento maior, com cerca de 100 pacientes. A pesquisadora pretende também verificar se o padrão de aparição das mutações identificadas para os cânceres de ovário e endométrio no estudo internacional é o mesmo entre as brasileiras.

“Queremos fazer um perfil genético completo desses cânceres na nossa população porque, como somos muito miscigenados, a frequência dessas mutações pode ser diferente aqui”, diz. “As 12 mutações identificadas muito provavelmente serão observadas nas nossas amostras, mas podemos encontrar também outros marcadores.”

Kinde acredita que o teste PapGen deve estar disponível para a clínica em dois ou três anos, a um custo de aproximadamente R$ 200, o mesmo valor cobrado hoje para fazer o teste de DNA para detectar o HPV (que é gratuito pelo SUS) nos Estados Unidos.

O teste PapGen deve estar disponível para a clínica em dois ou três anos

Apesar de não parecer muito, os testes de DNA são mais caros que um exame de rotina. Aqui no Brasil, o teste de DNA para HPV não é praxe; é recomendado apenas para pacientes com resultado suspeito no papanicolaou. Mas a ginecologista Shannon Westin, da Universidade do Texas (EUA), acredita que o novo teste pode ser adotado por sistemas de saúde se os recursos forem bem direcionados. 

“Mulheres jovens que já fazem o papanicolaou regularmente têm baixo risco de desenvolver câncer de endométrio e ovário”, diz. “Essas doenças ocorrem com mais frequência depois da menopausa e o teste teria mais impacto e menos custos se aplicado nesse grupo. Será um grande avanço se bem direcionado.”

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line