Nossos genes carregam boa parte daquilo que somos – da cor dos olhos e cabelos a doenças graves que podem surgir de mutações nesses segmentos de DNA. Ainda hoje, as doenças genéticas representam um enorme desafio para a ciência, mas isso pode mudar em breve. Apesar de alguns insucessos das terapias genéticas nas últimas décadas, elas parecem estar cada vez mais próximas de se concretizar em tratamentos efetivos.
Quem afirma é o geneticista canadense Jaques Tremblay, pesquisador da Universidade de Laval, no Canadá, e um dos maiores especialistas no tema. Recentemente, a equipe de Tremblay obteve resultados promissores com uma nova terapia genética baseada na utilização de proteínas conhecidas como Tal efector (Tale) para corrigir a expressão dos genes defeituosos em pacientes com distrofia muscular de Duchenne e ataxia de Friedreich (doenças degenerativas que afetam os músculos e, no caso da ataxia, também os neurônios).
Em visita ao Brasil na última semana para uma conferência voltada a profissionais de saúde, Tremblay conversou com a CH On-line sobre detalhes da sua pesquisa com as proteínas Tale e falou sobre as perspectivas de desenvolvimento na área – ele acredita que, em dez anos, será possível desenvolver terapias genéticas eficientes contra cerca de dez mil doenças causadas por mutações em um único gene.
O geneticista também destacou a recente parceria para intercâmbio acadêmico entre o Brasil e universidades canadenses por meio do programa governamental Ciência sem fronteiras, o que pode ajudar a impulsionar a pesquisa nacional em terapias gênicas.
CH On-line: O seu grupo tem se destacado no desenvolvimento de terapia genética com base em proteínas Tale. O senhor poderia explicar essa metodologia?
Jaques Tremblay: Temos trabalhado na modificação da expressão dos genes utilizando proteínas Tale. Os pacientes com distrofia de Duchenne possuem uma deleção no gene responsável pela produção da proteína distrofina que impede a conclusão da sua transcrição. A ideia é utilizar a Tale para corrigir esse processo, criando uma espécie de nova deleção: a proteína se liga a uma parte específica do gene, alterando sua transcrição e aumentando as chances de que as partes restantes ‘se encaixem’ para completar o processo. No caso da ataxia de Friedreich, que é causada pela repetição indevida de uma sequência de nucleotídeos que formam o DNA, a Tale se liga aos trechos repetidos para que a célula volte a codificar a proteína frataxina.
Embora as proteínas Tale tenham sido identificadas há pouco tempo, sua equipe já obteve resultados relevantes com essa abordagem.
Realmente, a descoberta das proteínas Tale é muito recente. Elas foram isoladas em bactérias de plantas há cerca de cinco anos. Essas proteínas são compostas de repetições de 34 aminoácidos, onde dois deles determinam a quais sequências de nucleotídeos a Tale deve se ligar. A alteração desses aminoácidos nos permite direcionar a proteína para as sequências de DNA de interesse. Por sua especificidade, foi natural pensar em utilizá-la em possíveis terapias genéticas.
Nos últimos meses, conseguimos resultados bastante expressivos com a distrofia e a ataxia. Em modelos animais, aumentamos em 30% a expressão de distrofina e em duas ou três vezes a expressão da frataxina, o que nos permite pensar até na cura dessas doenças.
As proteínas são inseridas nas células por meio de plasmídeos [moléculas de DNA extracromossômicas] programados para codificá-las. A beleza do processo é que ele não afeta a expressão dos demais genes celulares. Mas ainda é preciso mostrar que o mesmo ocorre em humanos. Também buscamos alternativas para introduzir as proteínas diretamente no organismo, combinadas com peptídeos penetradores de células.
Além dos bons resultados, essa metodologia também apresenta outras vantagens em relação às outras terapias celulares?
Por um lado, uma terapia como essa necessitaria de aplicações constantes da proteína. Mas, por outro, teria vantagem sobre outras possíveis terapias celulares por não envolver transplante de células nem introduzir DNAs estranhos no DNA da célula, o que elimina o risco de complicações imunológicas e de integrações randômicas desse DNA, que podem levar ao desenvolvimento de câncer, por exemplo.
O seu laboratório também estuda outras possíveis terapias genéticas. O senhor poderia falar um pouco sobre elas?
Há muitas formas possíveis de terapia genética em desenvolvimento. Precisamos investir em todas elas, pois, nessa fase inicial, não temos como saber quais terão mais sucesso no tratamento humano. Uma das linhas mais antigas utiliza vírus como vetores de fragmentos de DNA, com o objetivo de substituir os genes defeituosos. Hoje, trabalhamos muito com vírus adeno-associados, que geram menos resposta imunológica do organismo devido à ausência de anticorpos preexistentes.
Realizamos estudos com outras proteínas, como as nucleases dedo de zinco (ZFN), para alterar a sequência de DNA das células alvo, uma linha que também tem conseguido avanços importantes. Somos, ainda, parceiros de um grupo japonês que desenvolve cromossomos humanos artificiais, uma técnica espetacular, mas sem aplicação clínica, por enquanto. Ela permite ‘montar’ cromossomos com os genes que nos interessam, uma abordagem muito diferente das usuais.
O senhor também está envolvido em pesquisas com células-tronco pluripotentes…
Sim, sim. Nesse caso, a proposta é utilizar células do próprio paciente para obter células-tronco pluripotentes, diferenciá-las em mioblastos [as células que formam as fibras musculares] e depois transplantá-las de volta. No início, usávamos células-tronco embrionárias, mas o trabalho foi facilitado com o desenvolvimento da técnica de obtenção de células-tronco pluripotentes, que valeu o Nobel de Medicina ou Fisiologia deste ano. Nessa abordagem, é preciso corrigir as células em algum ponto. No caso da distrofia de Duchenne, temos realizado essa operação depois que as células-tronco induzidas começam a se diferenciar, antes de se transformarem em mioblastos maduros. A vantagem da metodologia é que as novas células têm grande capacidade de multiplicação e pertencem ao próprio paciente, o que evita problemas de rejeição.
Com tantas possibilidades em teste, quais seriam as perspectivas para as terapias genéticas nos próximos anos?
Estamos vivendo a primeira fase da evolução dessas terapias. Vamos pegar o caso do projeto genoma humano: levou anos para completá-lo, com a participação de muitos laboratórios pelo mundo. Hoje, é possível fazer o mesmo trabalho em menos de uma semana, em um único laboratório. Toda essa tecnologia permitiu identificar cerca de 10 mil doenças genéticas monogênicas, ou seja, ligadas a mutações específicas em um único gene. Acho que a tecnologia que temos atualmente nos permite pensar em curar todas elas, substituindo ou corrigindo a expressão dos genes defeituosos.
De qualquer forma, é bom lembrar que hoje, em geral, não há tratamento disponível para essas doenças. Combatemos apenas alguns de seus sintomas. Também é verdade que, individualmente, elas são raras; mas, uma vez tomadas em conjunto, se tornam bem mais comuns. Cerca de uma em cada 12 pessoas no mundo é afetada por uma doença genética monogênica. E são doenças para a vida toda e que custam muito aos sistemas de saúde. Por isso, a relação de custo-benefício desse investimento é muito positiva.
As discussões sobre questões éticas associadas às terapias celulares continuam presentes, certo?
Sim, é verdade. Precisamos considerar que lidamos com técnicas muito novas, experimentais, e que os comitês de ética trabalham com uma lógica baseada no risco e no potencial benefício. Alguns comitês permitem que você realize certas pesquisas e outros, de instituições a poucos quilômetros de distância, proíbem. Essa é a dificuldade: é tudo uma questão de interpretação.
O senhor falou muito sobre doenças genéticas monogênicas, como a distrofia de Duchenne. Na sua opinião, as terapias celulares poderão ser utilizadas, no futuro, também para o combate a doenças genéticas mais complexas?
Isso é uma tarefa mais complicada. Muitos grupos estão buscando genes associados com doenças complexas, como problemas do coração, ou relacionados ao seu prognóstico.
Acredito que, no futuro, a tecnologia para modificar e ativar genes pode ajudar tanto no combate a doenças infecciosas quanto na prevenção de crônicas, nos tornar geneticamente mais resistentes a elas ou controlar sua evolução. Pode ser a porta de entrada para um combate mais racional a diversos tipos de doenças.
Há pouco tempo o governo brasileiro firmou uma parceria com diversas universidades do Canadá para intercâmbio acadêmico. Quais as suas expectativas para essa parceria?
Essa parceria tem como objetivo oferecer bolsas de estudo nas universidades que integram o Caldo, consórcio que inclui algumas das melhores universidades do Canadá. No Brasil, há pouca gente trabalhando com terapias genéticas, mas isso pode mudar, pois o país vem crescendo muito. Por isso, minhas palestras também tiveram como objetivo divulgar essas possibilidades e estimular o interesse de pesquisadores. Essa também é uma oportunidade única para estimular a integração entre ciência básica e clínica, que é outra grande dificuldade na terapia genética. Para levar as metodologias até os pacientes, é preciso uma aproximação maior com os médicos, que eles se interessem por fazer esse tipo de pesquisa.
O senhor acha que ainda estamos longe do dia em que doenças genéticas poderão ser tratadas com terapias simples e acessíveis?
Para dizer a verdade, não. Se tivermos o investimento necessário, isso talvez possa ser alcançado em dez anos. O investimento na genômica permitiu o desenvolvimento de novas aparelhagens e procedimentos, que simplificaram muito a transcrição do genoma humano. Isso só foi possível pelo investimento. Na área das terapias genéticas, estamos no mesmo ponto que a genômica estava dez anos atrás, quando algumas pesquisas e tecnologias começavam a dar certo. Há muito trabalho a ser feito.
Além de bolsas de estudo e palestras, a parceria do Brasil com universidades canadenses na área de terapias genéticas pode render um programa itinerante de diagnóstico no país. O projeto, ainda em fase de planejamento e captação de recursos, será capitaneado pela Cruz Vermelha brasileira e pretende desenvolver um trabalho social de diagnóstico de doenças genéticas com base em unidades ambulatoriais e laboratoriais itinerantes
A iniciativa seguiria os moldes do programa Brasil sem alergia, que também utilizou unidades-volantes para realizar o diagnóstico dessa doença e atuar na capacitação dos sistemas de saúde locais em diversas partes do Brasil. É o que explica o médico imunologista Marcello Bossois, doutorando no laboratório de Tremblay e um dos coordenadores dos dois projetos. “No Brasil, o número de médicos especializados em genética é muito deficiente, assim como o diagnóstico desse tipo de doença”, avalia. “Nossa ideia é chegar a locais afastados dos grandes centros, onde a população não tem acesso a esse tipo de serviço.” Os pacientes atendidos seriam encaminhados pelo SUS e os integrantes da equipe médica treinados na Universidade de Laval (Canadá).