Discurso da prevenção é intimidador e autoritário, dizem estudos

Em 1996, foi ao ar a primeira campanha institucional brasileira de prevenção às drogas. Seus filmes podem ser enxergados como peças que refletem o imaginário social sobre o tema das drogas. E foi esse o viés adotado por duas dissertações de mestrado na área de semiótica recém-defendidas na Universidade de São Paulo (USP) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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Cenas de quatro filmes da campanha de prevenção às drogas veiculada na TV nos anos 1990

 

Os estudos analisaram as estratégias discursivas e efeitos de sentido nos anúncios veiculados entre 1996 e 99 e chegaram a conclusões similares: o discurso da prevenção apresenta um tom autoritário, alarmista e intimidador e não reflete a realidade social das drogas no Brasil.

A pesquisa da professora de comunicação Arlene Lopes Sant’Anna, feita na USP, analisou vinte vídeos da campanha sob a perspectiva da semiótica do lingüista lituano Algirdas J. Greimas. Entre suas conclusões, Arlene constatou que as drogas são apresentadas de forma alarmista. “Isso se percebe no vídeo em que um adolescente aparece em uma sala de aula com crianças e a voz de um narrador explica que ele repetiu várias vezes porque consome drogas”, questiona. Ela aponta também o autoritarismo do discurso de prevenção, como no filme em que um rapaz fuma crack e em seguida cai no chão de olhos fechados. “Nada mais autoritário: se você usar, morre”, conclui.

Arlene frisa que os anúncios não retratam fielmente o consumo de drogas no Brasil. Estudos recentes do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas (Cebrid), por exemplo, apontam a população de rua e as camadas mais pobres como as principais consumidoras no país. No entanto, todos os vídeos analisados mostram objetos, cenários e personagens de uma classe privilegiada. “Os anúncios procuram preservar os valores sócio-culturais dessa classe, de forma a afastar seus jovens das drogas”, denuncia.

 

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Cenas de quatro filmes da campanha de prevenção às drogas veiculada na TV nos anos 1990

Uma outra pesquisa, desenvolvida na PUC-SP pelo psicanalista Eduardo Furtado Leite, analisou em fase preliminar 25 filmes da campanha e, em seguida, quatro deles para um estudo mais detalhado. A abordagem semiótica de Furtado buscou estabelecer as relações de sentido em torno dos termos ‘usuários’ e ‘drogas’. Foi constatada na maioria dos filmes uma estratégia de intimidação, que apresenta um consumidor impotente e submisso diante da droga. “O ‘usuário’ é sempre determinado pela ‘droga'”, avalia.

 

Essa inexorabilidade do vício é criticada por Furtado, que para aprofundar sua pesquisa entrevistou especialistas em toxicodependência. “As drogas não agem de forma idêntica nos indivíduos”, afirma. Os próprios especialistas têm dificuldade para estabelecer um paradigma da dependência e citam fatores subjetivos e particulares que levam a ela, como predisposição genética, ambiente familiar, necessidade de aceitação por um grupo ou até vazio existencial.

Os dois pesquisadores, no entanto, não se limitam às críticas e consideram seus trabalhos instrumentos de apoio para se construir uma nova política de prevenção às drogas. Arlene avalia positivamente um anúncio atual em que a violência gerada pelo tráfico é diretamente associada ao consumo de drogas — a ausência dessa associação na campanha dos anos 1990 é uma das principais críticas de seu estudo.

Furtado aponta o grande desafio para o discurso da prevenção: “é preciso uma campanha menos intimidadora, que apresente o uso das drogas como um recurso que tende à monotonia”, aponta. “O discurso intimidador tende a causar nos adolescentes um efeito de desafio.” Para ele, a prevenção passa pela prática de atividades que permitam entrar numa dimensão espaço-temporal alternativa ao cotidiano — “atividades que impliquem técnicas do corpo como o esporte, a dança e o teatro”.

Denis Weisz Kuck
Ciência Hoje on-line
13/05/03