Discutindo a relação

Um dos grandes desafios no controle da tuberculose é a existência de variantes do bacilo responsável pela doença (Mycobacterium tuberculosis) que resistem ao tratamento com antibióticos. Vários estudos apontam que o desenvolvimento de tuberculose resistente a medicamentos é maior em populações com índice elevado de infecção por HIV.

A conclusão óbvia é que o vírus da imunodeficiência humana está diretamente relacionado com o risco de se contrair a forma mais grave da doença bacteriana.

Pesquisa publicada na última edição da revista Science Translational Medicine mostra que não é bem assim. Os autores do estudo, liderados pelo russo Rinat Sergeev, fizeram uma revisão de oito importantes trabalhos realizados em países em que tanto infecção por HIV quanto tuberculose são endêmicas e concluíram que a relação entre essas duas condições é mais complexa do que se imaginava.

“Em determinadas circunstâncias, pacientes infectados por HIV e M. tuberculosis podem ter menos risco de ser afetados por cepas do bacilo resistentes a medicamentos”

O grupo, que reúne pesquisadores de áreas diversas como física, matemática, epidemiologia e medicina, produziu, a partir de estudos realizados entre 1992 e 2012 na África do Sul, Botswana, Costa do Marfim, Moçambique, Tanzânia e Suazilândia, um modelo que abrange todo o processo de surgimento de variantes de M. tuberculosis resistentes a antibióticos em populações com alto índice de infectados por HIV.

“Em determinadas circunstâncias, pacientes infectados por HIV e M. tuberculosis podem ter, ao contrário do que se pensa, menos risco de ser afetados por cepas do bacilo resistentes a medicamentos”, resumem os pesquisadores no artigo. Essa aparente contradição pode ser explicada.

Evolução epidêmica

A primeira infecção de uma população por M. tuberculosis é, em geral, tratável com o uso de antibióticos. O tratamento feito de forma irregular, entretanto, leva ao surgimento de cepas da bactéria resistentes a medicamentos.

Mycobacterium tuberculosis
Colônia de ‘M. tuberculosis’, também conhecido como bacilo de Koch, causador da tuberculose. Após sofrer mutação, bactéria torna-se resistente a antibióticos. (foto: George Kubica/ PD-USGov-HHS-CDC)

Nas comunidades estudadas pelo grupo, quando a tuberculose resistente a medicamentos começou a aparecer, as pessoas com HIV já estavam infectadas por M. tuberculosis (o vírus da imunodeficiência facilita a infecção bacteriana), ainda que o bacilo estivesse inativo.

Segundo os pesquisadores, com o surgimento de uma nova epidemia de tuberculose, o que acontece é uma ativação das bactérias que estavam latentes nesses pacientes. Como a infecção ocorreu antes da chegada das cepas resistentes de M. tuberculosis, os antibióticos tiveram efeito terapêutico nessas pessoas. Já os indivíduos livres de HIV desenvolveram uma infecção bacteriana nova e, portanto, tiveram mais chances de contrair a tuberculose resistente.

Essa diferença de suscetibilidade é válida apenas nos primeiros estágios de uma epidemia de tuberculose resistente a medicamentos. Após algum tempo, a doença nos soropositivos também pode progredir para uma variante mais resistente.

É por isso que, quando uma população inteira é tomada como referencial e comparada a outra em que a incidência de HIV é significativamente menor, a tuberculose resistente parece estar diretamente associada ao vírus.

A descoberta dessa relação pode mudar as estratégias de controle do avanço de mutações de M. tuberculosis

Para Sergeev, a descoberta dessa relação pode mudar as estratégias de controle do avanço de mutações de M. tuberculosis, que até agora se baseavam na associação direta entre infecção por HIV e propensão para hospedar bacilos resistentes.

“Nosso resultado sugere que países com alta incidência de HIV e tuberculose e capacidade insuficiente de diagnóstico e tratamento da doença bacteriana poderão estar vulneráveis ao surgimento de variantes altamente transmissíveis e extremamente resistentes no futuro”, diz o russo, pesquisador do Instituto Ioffe, na Rússia, e do Brigham and Woman’s Hospital, nos Estados Unidos, em entrevista à CH On-line.

Estudo longitudinal

Em um comentário publicado na mesma edição da Science Translational Medicine, o epidemiologista Brian G. Williams, do Centro Sul-africano de Modelagem e Análise Epidemiológica, afirma que o grande mérito do trabalho da equipe de Sergeev é mostrar que “estudos simples e de corte transversal (…) podem ser enganosos porque não levam em conta os efeitos dinâmicos no processo investigado”.

Mas Sergeev considera que o resultado obtido por seu grupo não torna as pesquisas anteriores sobre a relação entre HIV e tuberculose inválidas. “Colocamos os estudos de caso em uma perspectiva tridimensional, mas isso não significa que, separadamente, eles não sejam confiáveis”, diz. “É como montar um grande quebra-cabeça de peças com dados corretos, porém incompletos.”

Para o pesquisador, investigações longitudinais como a de sua equipe mostram que a imagem formada pelo quebra-cabeça completo pode ser diferente do que cada uma das peças pode sugerir individualmente.

Célio Yano
Ciência Hoje On-line/ PR