Do amendoim ao caviar

 


Igreja e chafariz da Misericórdia (chafariz do Tebas), retratados em aquarela de J. Wasth Rodrigues. No início do século 19, a principal fonte de alimentação nas ruas do centro de São Paulo eram os petiscos vendidos pelas quitandeiras (imagens: acervo do Museu Paulista da USP).

Se hoje em dia há dezenas de opções para quem quer – ou precisa – comer na rua, o mesmo não acontecia na cidade de São Paulo no século 19. Naquela época, restaurantes e confeitarias ainda eram extremamente raros e a principal fonte de alimentação nas ruas do centro da capital paulista eram os petiscos vendidos pelas quitandeiras, que, somente após a modernização da cidade, deram lugar ao comércio de luxo.

Essa transformação urbana refletida na alimentação de rua foi o tema da tese de doutorado do historiador João Luiz Maximo da Silva, apresentada na Universidade de São Paulo (USP). Para construir um cenário preciso do consumo de alimentos nas ruas da capital paulista no século 19, Maximo analisou decretos governamentais e depoimentos e escritos de viajantes, memorialistas e cronistas.

Segundo o historiador, tanto os ricos quanto os pobres consumiam os salgadinhos e doces das quitandeiras – em sua maior parte, negras escravas ou forras. “Embora a principal clientela das quitandeiras fosse, sem dúvida, formada por trabalhadores mais humildes, homens de classes mais altas também eram fregueses”, diz. “Já as mulheres e as crianças da elite não circulavam muito pelas ruas da cidade.”

Os petiscos de origem mameluca e indígena, com influências africana e portuguesa, eram os principais alimentos vendidos pelas quitandeiras, que tomavam as ruas do centro da cidade com seus tabuleiros. “Algumas delas também tinham quartinhos alugados, onde, além de venderem petiscos, comercializavam alimentos primários, como farinha de milho, verduras e legumes”, conta Maximo. “Por isso, as quitandeiras também eram importantes para o abastecimento da cidade.”

Comer na rua significava, nas palavras de Maximo, “experimentar sabores”. Cuscuz, pastéis, empadas, bolos, broas, pinhões, amendoins, doces, tudo isso era muito diferente do que se comia dentro de casa. “Lá, prevalecia o feijão, a farinha de milho e o toucinho – embora a variedade fosse maior em famílias mais ricas”, explica o historiador.

Uma nova configuração urbana
No final do século, porém, um espírito de modernização foi importado da Europa e várias medidas foram tomadas pelo governo para disciplinar o espaço urbano e torná-lo cada vez mais parecido com as capitais européias. Essas mudanças acabaram por ‘expulsar’ as quitandeiras para as periferias da cidade e o consumo de seus petiscos passou então a ser visto com certo preconceito pelas classes mais altas.

A aquarela de J. Wasth Rodrigues retrata a Igreja do Rosário, localizada onde hoje fica a Praça Antônio Prado, em São Paulo. Esse era um importante ponto de concentração de quitandeiras, que foram deslocadas após a retirada da igreja do local.

“As preocupações higiênicas, o surgimento de novos estabelecimentos e a imigração, além da importação e industrialização dos alimentos, tiveram um papel crucial no desenvolvimento de novos hábitos alimentares”, diz Maximo. Os surtos epidêmicos – que geraram maior preocupação com a qualidade dos alimentos – e o crescimento da economia devido às exportações de café são alguns dos motivos para essas mudanças de mentalidade.

O governo, então, intensificou a promulgação dos chamados ‘códigos de posturas’, leis que procuravam organizar o comércio de rua. Um exemplo foi o decreto para retirada da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e de casas próximas – ponto de concentração de escravos e forros que ali habitavam e vendiam alimentos –, que fez com que muitas quitandeiras fossem deslocadas.

Nesse novo cenário, os alimentos de rua passaram a ser vistos como ‘coisa de caipira’, símbolos do atraso do país. Em seu lugar, os restaurantes e confeitarias, que se multiplicavam pelas ruas do centro, começaram a ser os pontos de venda e consumo de comida fora de casa. “O centro passou a ser lugar de comércio de luxo e símbolo da modernidade européia”, destaca Maximo.

Mas para onde foram as quitandeiras? “Os moradores do centro, em sua maior parte de classes mais baixas, foram deslocados para os subúrbios da cidade, onde as quitandeiras continuaram vendendo petiscos”, esclarece.

No entanto, o processo de substituição dos hábitos antigos por costumes considerados mais modernos também atingia os subúrbios. A atividade das quitandeiras tornou-se então cada vez mais marginal e restrita e o comércio de rua passou a ser dominado por vendedores ambulantes, em geral imigrantes que chegavam a São Paulo.

Isabela Fraga
Ciência Hoje On-line
13/04/2009