Doar é preciso

O reduzido número de cadáveres para ensino e pesquisa sempre foi um sério problema em escolas médicas e demais cursos da área de saúde no Brasil. “A situação é crítica”, alerta o anatomista José Geraldo Calomeno, do Setor de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e presidente da Comissão de Distribuição de Corpos para Estudo e Pesquisa, criada no Paraná com o objetivo de ordenar a oferta de cadáveres para as instituições de ensino superior do estado.

Cartaz lançado pela Comissão de Distribuição de Corpos para Estudo e Pesquisa, no Paraná, no início de suas atividades. 

Segundo Calomeno, uma das causas do problema é o grande número de cursos na área de saúde, nos quais a disciplina de anatomia é obrigatória. “Do jeito que as coisas vão, é possível que em breve os alunos tenham que estudar em moldes artificiais”, prevê o anatomista, enfatizando a deficiência que isso pode gerar na formação de futuros médicos e profissionais de saúde.

Mas a recente aprovação, pela Assembléia Legislativa paranaense, da lei que cria o Conselho de Corpos para Ensino e Pesquisa no Estado abre perspectivas de se achar uma saída para o problema. Com a missão de organizar e fiscalizar a distribuição de cadáveres entre as universidades e faculdades que oferecem cursos na área de saúde, o conselho abrange várias instituições de ensino superior. A definição de critérios, segundo Calomeno, permitirá uma distribuição de corpos mais eqüitativa. Hoje há uma lista de classificação de universidades e faculdades elaborada com base no número de alunos e na data de entrada da instituição na listagem do conselho.

A aprovação da lei revela que o Paraná está à frente dos demais estados brasileiros no que diz respeito a medidas para incentivar e desburocratizar a doação de corpos para ensino e pesquisa. Criada em 1999, a comissão presidida por Calomeno dará lugar ao conselho assim que ele for nomeado. A principal diferença entre a comissão já existente e o conselho recém-criado é que este último deverá conter membros de todas as instituições de educação superior do estado, públicas ou privadas, que ofereçam disciplinas que requerem cadáveres para estudos.

No Departamento de Anatomia a UFPR, onde Calomeno é professor, a situação é precária. Embora o MEC sugira que os laboratórios de anatomia tenham ao menos um cadáver para cada grupo de 10 estudantes, a UFPR recebe atualmente apenas um ou dois corpos por ano, o que tem resultado em um cadáver por grupo de 50-60 alunos.

Processo simples
A criação do conselho deverá agilizar os procedimentos que envolvem a doação de corpos. Para que o corpo possa ser doado a uma instituição de ensino, o indivíduo deve ter tido morte natural (vítimas de morte violenta não são de domínio público e ficam à disposição da justiça para investigações). Preenchido esse requisito, a família que decidir doar o cadáver de um parente deverá contatar a Comissão de Distribuição de Corpos para Estudo e Pesquisa, que o encaminhará para a instituição acadêmica que esteja no topo da lista. São necessários ainda um atestado de óbito e o consentimento da família por meio de uma escritura pública assinada por pelo menos dois consangüíneos. 

Desenho do anatomista belga Andréas Vesalius (1514-1564). Sua conhecida obra De humani corporis fabrica (1543) reúne em sete livros os ossos, os músculos, as artérias e veias, o sistema nervoso, os órgãos abdominais, o coração e os pulmões, e o cérebro.

“Mas, para evitar problemas futuros, é importante que a decisão seja tomada por unanimidade pela família”, salienta Calomeno. Segundo o anatomista, os familiares podem, a qualquer momento, interromper o processo de doação, mesmo que o corpo já esteja sob responsabilidade de alguma instituição. Cumpridas essas etapas, o processo recebe o aval do Ministério Público e, após a cerimônia fúnebre (se a família quiser realizá-la), o corpo é enviado para uma escola. Todo o processo – inclusive o enterro, caso a família embargue a doação – é custeado pela comissão.

No caso de corpos não identificados e não reclamados, o processo é mais burocrático. É preciso esperar 30 dias, período em que a existência do cadáver é anunciada 10 vezes em jornais. Se não for reivindicado, ele seguirá para uma instituição após autorização de um juiz.

Calomeno não acredita que a criação pura e simples do conselho resultará no aumento da doação de cadáveres. A seu ver, o problema está relacionado principalmente com questões de natureza cultural. “Cadáveres existem, mas falta informação. É preciso fazer com que as famílias compreendam o significado da doação de um corpo para estudos.”

Em países desenvolvidos, a situação é diferente. Nos Estados Unidos, por exemplo, o número de doações costuma ser tão grande, que, dependendo da causa da morte e da distância em que o corpo se encontra, as universidades recusam a doação.

Uma solução apontada pelo anatomista para administrar a situação no Paraná é a instalação, nos hospitais-escola, do Serviço de Verificação de Óbito (SVO). Em âmbito nacional, as universidades que possuem o SVO subordinado à Secretaria Municipal de Saúde – e não à Secretaria Estadual de Justiça – alcançam melhores resultados no empenho para a obtenção de corpos. 

Sandoval Matheus Poletto
Especial para Ciência Hoje On-line/ PR
27/02/2007