Dormindo com o inimigo

Especialista em comportamento alimentar de mamíferos, Wilson Uieda não podia imaginar que iria se envolver com estratégias para controle de baratas. Mesmo trabalhando durante dois anos para o Departamento de Atenção à Saúde Indígena (DASI), Uieda se surpreendeu com a infestação da espécie Blatella germanica e os ataques de mordida desses insetos em comunidades indígenas da Amazônia. 

Em correspondência publicada no periódico International Journal of Dermatology, Uieda, junto com o dermatologista Vidal Haddad Júnior, da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp), relata a situação e os casos registrados em duas aldeias visitadas, Apterewa Kayapó, no Pará, e Matokodakwa Enawé-nawé, no Mato Grosso, ambas em reservas protegidas. 

Os autores descrevem a infestação dos insetos e ataques sofridos pela comunidade, sobretudo durante o sono. Em observações de 40 habitantes de Apterewa Kayapó e 38 de Matokodakwa Enawé-nawé realizadas no início da manhã, eles registraram lesões ocasionadas por baratas que se alimentaram da pele dos moradores. As lesões ocorreram em áreas mais expostas, como o rosto (ao redor da testa), ombro, pescoço e nádegas. 

Doze dos 78 indivíduos examinados apresentavam ulcerações rasas cobertas com pequena quantidade de sangue ou feridas já cicatrizadas, com cascas hemáticas. Os ataques afetavam principalmente os mais jovens, que têm sono mais profundo – nove dos doze pacientes eram crianças.

As lesões ocorreram em áreas mais expostas, como o rosto (ao redor da testa), ombro, pescoço e nádegas

Segundo Haddad Júnior, as mordidas se assemelham a um arranhão superficial na pele. “As baratas não possuem dentição, por isso usam a força da mandíbula para fazer uma espécie de ‘raspagem’, e então se alimentam, por exemplo, da queratina da unha e da pele a seu redor”, explica o dermatologista. 

Diante das condições sanitárias verificadas, os pesquisadores concluíram que os ataques devem-se, sobretudo, a questões higiênicas. Segundo Uieda, as ocas não têm espaços bem definidos e os indígenas dormem no mesmo lugar onde os alimentos são guardados. “Encontramos uma grande quantidade de baratas nas redes onde os índios dormiam”, lembra o biólogo.

Iscas
Uieda, que esteve nas aldeias, tentou conter a manifestação com iscas de ácido bórico, queijo ralado e farinha de trigo. As baratas devoravam as iscas e em três dias começavam a morrer. (foto: Wilson Uieda)

O pesquisador explica que a barata, típica do meio urbano, pode ter sido levada às aldeias por seus próprios integrantes, que mantêm contato constante com as cidades mais próximas. O costume de acumular o lixo e restos de alimentos dentro das casas teria ajudado na proliferação da Blatella germanica, que encontrou na aldeia um ambiente propício para se desenvolver.

Buscando interferir o menos possível nos costumes dos indígenas das aldeias, para respeitar o trabalho de outros profissionais nessas comunidades, Uieda elaborou uma estratégia. Juntou farinha de trigo, queijo ralado, cebola e ácido bórico e usou a mistura, que se assemelha a uma massa de pão, como isca para atrair as baratas. Cerca de dois a três dias depois de morder a isca, as baratas começaram a morrer. 

Segundo o biólogo, a estratégia ajudou a diminuir a população de baratas domésticas, mas uma das aldeias não conseguiu eliminá-las completamente. “Seis meses depois, a aldeia dos Enawé-nawé teve que ser evacuada e as ocas, feitas de palha, foram queimadas”, lamenta.

Veja o vídeo gravado pelo pesquisador que visitou as aldeias

Higiene como prevenção

A Blatella germanica é considerada uma das principais pragas de baratas no mundo, sobretudo devido a sua alta taxa de reprodução. Ela também se adapta rapidamente a diferentes ambientes e costuma viver junto a aglomerações humanas. Alimenta-se de fezes, sangue, urina, pele, papel e carne podre. Ocasionalmente, também come queratina e pele humanas.

No artigo, os pesquisadores destacam que o problema da infestação desses insetos não é exclusividade das duas aldeias estudadas. Outras comunidades indígenas sofrem com o mesmo problema, mas o caso das aldeias Apterewa Kayapó e Matokodakwa Enawé-nawé impressiona pela presença desses insetos em grande quantidade e pela frequência das mordidas.

Uieda ressalta que a simples eliminação dos insetos não seria suficiente para acabar com a infestação. A seu ver, é necessário implementar medidas preventivas de higiene nesses locais. No caso relatado, a instalação das baratas na aldeia foi facilitada pela indiferença inicial dos indígenas e pela falta de conhecimento sobre as possíveis doenças e infecções que esses insetos podem trazer. 

A simples eliminação dos insetos não seria suficiente para acabar com a infestação

Em meio urbano, esse tipo de ataque é mais raro, mas Haddad Júnior afirma que existem casos de mordidas de baratas em locais onde as pessoas ficam expostas a condições precárias de higiene. 

No entanto, é difícil encontrar estudos sobre o comportamento desses insetos na literatura atual. “Quando escrevemos o artigo, fizemos algumas pesquisas e encontramos apenas registros muitos antigos desse tipo de ataque”, afirma o dermatologista. “Apenas em casos de grandes infestações é que se registram casos de mordida de barata”, completa.

Segundo Haddad, as mordidas em si não representam perigo para a população. A limpeza da área afetada e a aplicação da medicação adequada ao ferimento são suficientes para tratar as lesões. O dermatologista afirma, porém, que o diagnóstico é importante para alertar sobre a situação sanitária do local onde o paciente vive.

Confira mais imagens da infestação de baratas nas aldeias

 

Fernanda Távora
Ciência Hoje On-line

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