Dormindo com o inimigo

Pode vir do próprio Aedes aegypti a inspiração para o desenvolvimento de novas estratégias que evitem a proliferação desse mosquito e a disseminação dos vírus da dengue e da febre amarela. Pesquisadores norte-americanos descobriram que os mosquitos machos transferem para as fêmeas durante o acasalamento proteínas que podem, entre outros efeitos, suprimir seu apetite pelo sangue de mamíferos.

A dengue afeta aproximadamente 50 milhões de pessoas todo ano e coloca em risco dois terços da população mundial. Atualmente, o Brasil vive uma das maiores epidemias de sua história. No ano passado, a doença alcançou níveis epidêmicos na Ásia, nas Américas do Sul e Central e no México. Já a febre amarela voltou a assustar a população brasileira recentemente, com algumas mortes confirmadas em decorrência da doença.

O estudo norte-americano, publicado este mês na revista Insect Biochemistry and Molecular Biology, fornece informações para a criação de novas formas de controle do A. aegypti, o que poderia conter a transmissão dessas doenças. Os pesquisadores, liderados por Laura Harrington, da Universidade Cornell (Estados Unidos), identificaram 63 proteínas supostamente provenientes de glândulas reprodutoras masculinas e que são transferidas para as fêmeas durante o acasalamento .

O mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue e da febre amarela (imagem do filme O mundo macro e micro do mosquito Aedes aegypti/ Instituto Oswaldo Cruz).

Embora os mosquitos machos não se alimentem de sangue e, por isso, não atuem diretamente na transmissão de patógenos, as moléculas produzidas por eles podem exercer importante influência sobre o comportamento alimentar, a fisiologia, a sobrevivência e a reprodução das fêmeas do mosquito. Além de cortar o apetite por sangue, essas proteínas poderiam desencadear a perda de interesse sexual, estimular a produção de ovos e afetar a coagulação do sangue ingerido.

“A identificação e a exploração dessas moléculas lançam uma nova luz sobre a biologia do acasalamento do mosquito da dengue e oferecem novos alvos potenciais para o controle populacional do vetor por meio de intervenção no rendimento reprodutivo desse inseto”, dizem os autores no artigo.

Estudos anteriores já indicavam que proteínas produzidas nas glândulas acessórias reprodutivas masculinas do A. aegypti e transmitidas para as fêmeas acasaladas afetam o comportamento sexual, a alimentação, a digestão de sangue, o vôo, o desenvolvimento ovariano e a deposição de ovos nesses insetos. Mas essas substâncias nunca haviam sido completamente caracterizadas.

Estudo comparativo
Para identificar e estudar os efeitos das 63 novas proteínas, os cientistas fizeram comparações com proteínas de glândulas acessórias da mosca Drosophila melanogaster. Além disso, as proteínas das glândulas reprodutivas e dos dutos ejaculatórios de machos do A. aegypti e do aparelho reprodutivo de fêmeas foram submetidas a análises por espectrometria de massa.

Das 63 proteínas identificadas, 21 foram encontradas no aparelho reprodutivo das fêmeas acasaladas, mas não em fêmeas virgens, o que sugere que essas moléculas são transferidas pelos machos durante o acasalamento. Além disso, alguns genes que codificam essas proteínas se expressavam apenas nos mosquitos machos.

Os resultados mostram que três dessas proteínas podem atuar na regulação do ferro e na coagulação sangüínea. “Isso é particularmente interessante”, dizem os cientistas, “uma vez que a fêmea do A. aegypti precisa de sangue para a produção de ovos e a digestão do sangue é acelerada pelo acasalamento”.

Segundo os pesquisadores, as proteínas produzidas nos tecidos reprodutivos dos machos do A. aegypti se assemelham às proteínas encontradas nas glândulas salivares e no aparelho digestivo de artrópodes que se alimentam de sangue. Para eles, é possível que essas proteínas atuem na digestão do sangue e que sua transferência dos machos para as fêmeas ocorra para ajudar no uso desse recurso para aumentar a produção de ovos.

O grupo quer agora identificar os alvos das proteínas do A. aegypti que regulam esses comportamentos pós-acasalamento e manipular as respostas fisiológicas das fêmeas do mosquito, como o aumento na produção de ovos. Esse conhecimento poderia levar à identificação de substâncias químicas específicas que afetem essas proteínas ou fornecer dados para experimentos sobre o uso de mosquitos geneticamente modificados, seja com genes desligados ou comportamentos reprodutivos alterados.  

Thaís Fernandes
Ciência Hoje On-line
23/04/2008